As mudanças das coisas (ou mutação instantânea #2)

escrevi aqui sobre as mutações nas músicas durante as sessões de estúdios de Bob Dylan. Porém, as experimentações dylanescas também sobem no palco, com o público como testemunha ocular nas transformações e improvisações nos arranjos.

Antes de falar da mudança, uma contextualização rápida da canção-objeto: “Things Have Changed”.

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Worried man with a worried mind

Durante uma pausa na turnê de 1999, em abril, Bob Dylan recrutou sua banda para ir ao Clinton Studios, em New York. Pela primeira vez, Dylan optou por não chamar nenhum produtor. Apenas o engenheiro Chris Shaw acompanhou os registros. A missão era gravar a primeira música desde Time Out Of Mind (1997), “Things Have Changed”

Depois de uma versão arrastada, a la “New Orleans”, que Dylan achou muito densa, ele e sua banda regravaram a canção. Para dar um toque mais rítmico, o baterista David Kemper incluiu chocalhos – que Bob tratou de aumentar exageradamente na mixagem. Chris Shaw se surpreenderia ao saber que aquela sessão de cinco horas, com uma mixagem rápida, seria a versão final e estaria presente nos cinemas do mundo todo.

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I’m in the wrong town, I should’ve been in Hollywood

Dylan compôs “Things Have Changed” especialmente para um filme – essa foi a primeira vez desde 1973 com “Pat Garrett and Billy The Kid”. A canção é trilha do filme Garotos Incríveis (Wonder Boys), dirigido por Curtis Hanson.

Tanto o longa-metragem quanto sua trilha receberam indicações para alguns prêmios, como o Globo de Ouro e o Oscar. Por ser uma premiação focada no cinema e não na música – como o Grammy – , Bob Dylan tinha grande interesse em conquistar a estatueta. Para estreitar suas relações com a Academia, que tem fama de não valorizar artistas ausentes, Dylan se engajou nessa missão.

Primeiro, Bob foi até o Globo de Ouro para agradecer a vitória na categoria “Trilha Sonora”. O segundo passo foi a aparição no Oscar de 2001. Como estava em turnê pela Austrália, fez uma transmissão via satélite para tocar “Things Have Changed” e fazer um discurso, caso ganhasse.

Eis o que aconteceu:

A esquisitice de Dylan no início da música se dá porque ele alterou de última hora seu posicionamento na câmera, bagunçando toda configuração de luz que o diretor do estúdio alugado fizera. No começo da música, Bob está verificando se está ao vivo ou se a imagem transmitida era uma gravação de segurança com o layout do diretor.

No agradecimento ao Oscar, Dylan disse:

“Oh, meu Deus, isto é incrível. Tenho que agradecer a Curtis Hanson por ter me encorajado a fazer isso e a todos na Paramount, Sherry Lansing e Jonathan Dolgen. Mas especialmente a Curtis, que se dedicou a isso… A todos na Columbia Records, minha gravadora, que me apoiou por todos esses anos… Eu queria dizer oi a todos da minha família e aos amigos que estão assistindo.

E eu gostaria de agradecer aos membros da Academia, que foram corajosos o suficiente para me dar um prêmio por esta canção – que obviamente… – uma canção que não trata com leveza nem faz vista grossa para a natureza humana. E que Deus abençõe a todos vocês com paz, tranquilidade e boa vontade. Obrigado”

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I’m not that eager to make a mistake

Com a paz e tranquilidade de ter conquistado o Oscar (que Dylan trataria de levar consigo em todos seus shows, deixando-o exposto no palco), Bob poderia agora, com boa vontade, deixar “Things Have Changed” sofrer as mesmas mutações que todas as outras canções sofrem quando caem na estrada dylanesca.

Abaixo, algumas variações:

Na edição de luxo de Tell Tale Signs, há uma versão ao vivo da canção, gravada em 15 de junho de 2000. A faixa mostra uma interpretação mais lenta e contida do que a de estúdio. (Edit: não há mais o áudio disponível no Youtube e afins).

Dez anos depois da gravação da música, Bob Dylan novamente a apresentou na TV, em 2009. Dessa vez era uma cerimônia em homenagem ao ator Michael Douglas (protagonista de Wonder Boys). Neste dia, Dylan parecia mais preocupado com o arranjo que fazia em sua guitarra (uma Duesenberg Starplayer TV) do que com o vocal. O resultado não é dos melhores, apesar dos bons solos:

Em 2011, a música ganhou velocidade, aproximando-se de um country cavalgante. Essa é a versão tocada em Florença, em 11 de outubro:

A partir de 2012, mais exatamente no dia 16 de julho, a canção recebeu de improviso um toque que se perpetuou no restante da turnê. A novidade é um detalhe, mas é interessante ver o registro da criação de um arranjo ditado por Dylan.

Observe o vídeo abaixo e preste atenção a partir do tempo 2:15. Dylan dá três notas na gaita, indica o tempo com a mão e é seguido de maneira discreta pelo baterista George Recile e parte da banda. Neste registro, é possível observar Donnie Herron (ao fundo) interagindo com os arranjos de Dylan na gaita e já “conversando” com os outros músicos sobre qual é a melhor hora para inserir a nova exigência do chefe.

O arranjo se tornaria padrão e apareceria nos shows posteriores, como no dia 19 de outubro de 2012, na Filadélfia (dessa vez, sem a indicação do maestro):

All the truth in the world adds up to one big lie

Se a máxima sessentista e dylanesca era um gerundio preocupado mas esperançoso com a mudança dos tempos, o Dylan do novo milênio, passado 40 anos, tem a experiência e a sabedoria para afirmar: as coisas mudaram. E não foi para melhor.

“Things Have Changed”, como o próprio autor afirmou em seu discurso no Oscar, é um retrato frio e desencantador da natureza humana. A busca por um significado em nossas vidas nos tornou fúteis e perdidos. Isso sem contar das ações escusas para conseguir o sucesso esteriotipado e hollywoodiano que a sociedade exige.

Em sua enciclopédia dylanesca, Oliver Trager elenca alguns dos subtemas tratados na canção: o isolamento sem esperança (“no one in front of me and no one behind”), questionamentos das finalidades (“waiting on the last trains… standing on the gallows with my head in a noose”), traição (“woman on my lap… got assassins eyes”), o desespero pela solução (“I’m in the wrong town, I should be in Hollywood”), confronto com realidades desagradáveis (“you can’t win with a losing hand”) e a busca pelo conforto através das razões erradas (“I’m in love with a woman who doesn’t eve appeal to me”).

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