No dia 5 de maio de 1903, nascia Blind Willie McTell. Oitenta anos depois e no mesmo dia, Bob Dylan terminaria a gravação de sua homenagem sonora ao bluesman de estilo único.
O músico
“Ele trata cada frase de sua música como uma entidade separada, com suas próprias rítmicas e melódicas nuances” – Woody Mann
“O estilo vocal e seu som se encaixam perfeitamente com aquela sonoridade solitária… Você provavelmente poderia dizer que ele é o Van Gogh do country blues” – Bob Dylan
William Samuel McTier nasceu no sulista estado de Georgia no dia 5 de maio de 1903 – o dia é indiscutível, mas o ano é motivo de discordância entre os estudiosos. O palpite de Michael Gray, biógrafo do músico, é tido como o mais correto (e foi o utilizado para o cálculo do título).
Cego desde o início da infância, aprendeu a tocar violão com a mãe por volta de 1914 e passou a se apresentar em estacionamentos e shows itinerantes – tanto para públicos negros quanto brancos. A partir de 1927, iniciou uma carreira de nove anos de estúdio, lançando 24 discos para quatro gravadoras diferentes. No seu repertório, blues, hinos e folks, além de ragtimes, baladas e canções populares.
No livro Bob Dylan in America, Sean Wilentz retrata a história de McTell e faz ótimas comparações com a vida de Dylan. Na canção “Statesboro Blues”, por exemplo, Willie canta “My mother died and left me reckless, my daddy dies and left me wild, wild, wild”. Segundo o dylanófilo e biógrafo do bluesman Michael Gray, apesar de o pai tê-lo abandonado antes dos sete anos de idade, Blind Willie parece ter vivido com sua mãe uma vida tranquila e sem grandes traumas em Statesboro; assim como Dylan, que forjou uma infância de andarilho e até citou ser orfão para criar uma imagem que fizesse jus às canções que interpretava.
Em 1922, dois anos após a morte de sua mãe, um branco de sobrenome Simmons arranjou para o jovem McTell, agora com 19 anos, uma vaga em uma escola para cegos em Macon. Lá, aprimorou suas habilidades como guitarrista e cantor, além de aprender a ler e a escrever música em Braille.
Além da bela e distinta voz, Blind Willie McTell tinha grande habilidade com slide e violão de doze cordas. Ao contrário de outros ícones do blues, McTell nunca seguiu o caminho de um mito: não há acordos diabólicos, brigas homéricas ou morte precoce em seu histórico. Blind Willie viveu uma vida tranquila na região de Atlanta e morreu em 1959, aos 56 anos, após dois derrames cerebrais.
Nunca obteve grande sucesso, mas passou a ganhar relevância após os relançamentos de suas gravações. No início dos anos 70, ganhou destaque após o Allman Brothers gravar “Statesboro Blues”. Para Wilentz, parece ter sido nesta época, quando houve diversos relançamentos dos fonogramas de McTell, que Bob se interessou mais pela discografia do bluesman. “Para Dylan, a música de McTell se tornou um critério, um padrão de excelência para compreender o mundo”.
A música
Na segunda semana de abril de 1983, Bob Dylan entrou em estúdio para gravar o que seria seu primeiro disco após a “fase cristã” (que rendeu três álbuns entre 1979 e 1981: Slow Train Coming, Saved e Shot Of Love). Para acompanhá-lo, Dylan recrutou Mark Knopfler (que já havia colaborado em Slow Train Coming), o ex-Rolling Stones Mick Taylor e outros. O local escolhido para a gravação foi o Power Station, no West Side de Manhattan.
Já no primeiro dia, Bob Dylan reservou quase todo o tempo para gravar “Blind Willie McTell” com a banda. O resultado, apesar de alguns belos momentos na interpretação de Dylan, é uma versão amorfa, com cada integrante percorrendo um caminho distinto.
Talvez pela frustração, Bob Dylan adiou o término da canção para o fim das gravações. No dia 5 de maio, decidiu ser acompanhado apenas pelo violão de Mick Taylor.
No piano e fazendo uma leve marcação com os pés, Dylan trouxe uma nova ambiência para “Blind Willie McTell”, tornando-a melancólica e precisamente empoeirada. Mesmo assim, preferiu não incluí-la em Infidels. A música, considerada uma das obras primas de Dylan nos anos 80, só viria oficialmente a público (depois de rodar pelos fãs através de bootlegs) em 1991, no volume 1-3 do Bootleg Series.
A estrutura da música é diretamente influenciada pela tradicional “St. James Infirmary” – que Blind Willie também utilizou para fazer “Dying Crapshooters Blues”. A letra de Dylan mostra um narrador em um hotel de New Orleans lembrando de toda a desgraça na história do Sul americana e expandindo para uma avaliação na corrupção humana. Ou, nas palavras de Michael Gray:
“Dylan alcança uma lamentação que serve para celebrar tanto a calamidade pública quanto o legado individual; para lidar com as desolações que estão por vir – ‘all the way from New Orleans to Jerusalem’ – e da morte de Blind Willie McTell”.
Apenas um adendo: a frase que dá título a canção não deve ser interpretada de maneira equivocada. Dylan não diz que McTell é o melhor cantor de blues, apenas que seu estilo é único.
Esponjas
Curiosamente, Blind Willie McTell já foi comparado a uma esponja por conseguir se apropriar de todo o tipo de música e reinterpretá-la a sua maneira – comparação essa também utilizada por aqueles que conviveram com Dylan no início dos anos 60. Tanto Bob quanto Willie não eram tão preocupados em dar os devidos créditos de suas fontes.
A influência de McTell sobre Bob Dylan ficou ainda mais evidente 10 anos após gravar “Blind Willie McTell”. No álbum World Gone Wrong, de 1993, Dylan escolheu “Broke Down Engine” para entrar no disco de covers.
“Blind Willie McTell”, versão 2012
No início de 2012, Bob Dylan escolheu esta canção para homenagear Martin Scorsese no Critics’ Choice Awards.
Quantas músicas o Bob Dylan “roubou” ao longo da sua carreira?
“Percys Song” foi “baseada” numa música do Paul Clayton, assim como “Don’t Think Twice, It’s All Right”.
Agora essa, “Blind Willie McTell”?
Quantas vezes ele fez isso no início da carreira?
No início da carreira era normal, era “normal” isso naquela bagunça do folk, tudo sem registro, etc.
Mas confesso que toda vez que fico sabendo de um “roubo” do Bob Dylan, fico decepcionado e achando que a vida de compositor é fácil, basta dar uma de joão-sem-braço e tudo bem, ninguém conhece nada mesmo…
No Livro “Crônicas Volume 1”, Bob Dylan fala a respeito de se basear em outras músicas, dizendo que “as pessoas faziam isso, não era problema, todo mundo fazia isso.”
Por que será que ninguém faz isso hoje?
Hoje está tudo registrado, todo mundo louco por dinheiro, etc. Não deixam de ter razão por algum lado.
Esse negócio de fazer música e se basear em outro compositor, em outra música, em outra estrutura, para mim isso é conversa mole para boi dormir. Não gosto disso, sou sincero, e fico decepcionado com essa “baseação” que vem desde o início.
Se usou a base de alguém, dê o crédito, pague o tributo a quem teve a primeira ideia, ou então pense melhor para tentar criar.
E ainda tem a música “Master of War”, pois li, também não sei onde, que Bob Dylan “se baseou” numa música antiga da Jean Ritchie, copiando, inclusive, os acordes, o arranjo, etc. Mas nesse caso parece que ele pagou uma fortuninha na época. Correto, muito correto, mas não gosto nem assim.
É o que eu penso.
E o primeiro disco foi todo “roubado” de Dave Van Ronk, que pediu, inclusive, que ele não gravasse House of the Rising Sun, mas Bob Dylan gravou, música que inicialmente Dave cantava, com uma harmonia um pouquinho diferente.
Além disso, Song to Woody, bem, a melodia ele também “roubou” do próprio Woody Guthrie, se não me engano a música se chama 1913 Massacres, algo assim.
Ô, Bob Dylan!
Nesse ponto os Beatles dão de 10 a 0 no Bob Dylan, nunca “roubaram” nada de ninguém, somente influência mesmo, o que é, no início, normalíssimo.
Bom, nesse caso de plágio, cabe aqui um parêntese: Se só existem sete notas musicais (e suas derivações, consequentemente), então, toda música acaba sendo “cópia” da outra. Entendo o que o amigo disse, mas me permita discordar. Pegue o exemplo de “Nottamun Town”, melodia em que se baseia “Masters of War”: a letra de Dylan a torna algo totalmente contemporâneo e a maneira como ele a toca, injetando uma boa dose de swing, a torna uma outra canção. “A Hard Rain’s a-Gonna Fall”, baseada em “Lord Randall”, por causa da maneira como a letra é explanada, é outro exemplo gritante… Embora eu ame as duas canções originais (Nottamun Town e Lord Randall), não há nada parecido com “Masters of War” e “A Hard Rain’s a-Gonna Fall”. Essas canções são sublimes.
Quanto a “Blind Willie McTell”, a canção, talvez seja a música mais bonita composta por Dylan. Não me canso de escuta-la. Fico pensando em como teria sido o álbum “Infidels” com a inclusão desta canção… Com certeza, seria um dos cinco maiores discos de Dylan.
É engraçado mas, toda vez que ouço ou canto esta canção, minha mente evoca o filme “Um Sonho de Liberdade”. Para aquele filme ficar perfeito, só faltou tocar essa canção, quando o Morgan Freeman está tentando ajustar sua vida, após sair da cadeia e quando ele sai em busca da carta de seu amigo, numa viagem pelos EUA… Teria sido o casamento mais perfeito de uma cena de um filme com uma canção…
Quanto a questão de “inspiração”, é muito complicado fechar questão nesse tema… “My Sweet Lord” baseia-se em “He’s So Fine”, “Happy Xmas” em “Stewball”, “Come Together” é “You Can’t Catch Me” (e olha que sou Beatlemaníaco de carteirinha e desde a mais tenra idade!). Para ficar em uma mais “nova”, tome o exemplo de “Don’t Look Back in Anger”, do Oasis, cuja introdução é “Imagine” (a canção mais maravilhosa do universo). Isso sem falar nos Stones, que “pegavam” a inspiração do Mick Taylor, da Marianne Faithfull e creditavam a eles próprios e por aí vai…
E olha que estou falando apenas dos Monstros Sagrados do Rock.
O fato de Bob Dylan ter se transformado em BOB DYLAN é porque tudo o que lhe servia de inspiração ele reciclava em algo totalmente novo. Assim como os Beatles. Assim como os Rolling Stones. E em nada isso os desmerece.
Para fechar, digo o seguinte: se para ouvir mais canções como “Imagine”, “A Hard Rain’s a-Gonna Fall”, “Come Together”, “Happy Xmas”, “Masters of War”, “My Sweet Lord” e tantas outras, tiver de ser por uma “inspiração alheia” reciclada, que seja. Só quero ouvir música de qualidade… E isso é o que os Mestres Dylan, Beatles, Lennon, Harrison, Stones sempre fizeram: música de primeiríssima qualidade.
Peço desculpas se o que digo, de alguma forma, chateie quem quer que seja… É apenas a opinião de alguém que não é músico de carreira, mas que respira música 24 horas por dia.
Abraço à todos e obrigado pela oportunidade da manifestação.
Belíssimo comentário, eu aquiesço contigo sim! Observem, nas artes cênicas, o inglês William Shakespeare, foi um dos maiores exemplos em usar esses recursos sutil e eficiente… Onde se reciclar, absorver e traduzir em novo e genialmente.
É isso, e, muito obrigado por essa tua ótima, realista, racional e esclarecedora explanação por cá!…
Matou a pau, parabéns!