Resenha: Shadows in the Night

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A valorização do silêncio; a intenção do imperfeito; o respiro poético; a revisitação do inusitado. Em seu trigésimo sexto álbum de estúdio, Bob Dylan explora nuances já testadas, mas nunca registradas da maneira como Shadows in the Night foi concebido.

A Valorização do Silêncio

Bob Dylan decidiu revisitar canções clássicas e algumas raridades – todas elas já interpretadas por Frank Sinatra – e escolheu manter a banda que o acompanha a tantos anos. Há arranjos para metais aqui e acolá, mas no geral é apenas Bob Dylan e seus parceiros – Tony Garnier, Charlie Sexton, George Recile, Stu Kimball e Donnie Herron.

Com um arranjo tão sutil e carinhoso, Bob Dylan se sentiu à vontade para explorar um tom raro de delicadeza.

A Intenção do Imperfeito

Através de um formato de gravação incomum (vale dar uma lida no relato do engenheiro de som, Al Schmitt), Bob Dylan gravou tudo de uma vez só, com poucos takes, sem refações, correções ou até grande modelagens no som (a mixagem que se houve é praticamente o que foi feito no momento da gravação). O resultado é um registro bem arranjado, mas minimalista. Os instrumentos entram apenas quando necessário.

Sobre a performance de Dylan, é preciso ter mente que ele nunca foi um cantor altamente técnico. Desde o início colocava sua voz como achava que deveria, usando mais sua intuição do que um método racional. Mas após mais de 50 anos, incluiu sua vasta experiência para uma intuição ainda mais apurada.

Isso não significa que ele seja um Sinatra ou um crooner clássico, mas um intérprete sincero, transparente e real. Quando ouvimos Sinatra, somos transportados para uma realidade platônica, em que os anjos formam a banda de apoio. Com Dylan, contudo, somos convidados para um passeio no mundo real do sentimento humano. Aqui, as imperfeições existem, com algumas falhas, como leves desafinações.

Ainda assim, o resultado é belíssimo e surpreendente. Há uma lacuna de timbre vocal entre Tempest e Shadows in the Night. Se em Tempest a voz era raivosa e áspera, dessa vez ela ganha ares doces, como um avô entoando canções de sua época (e, no fim, não é isso que este disco representa?).

O Respiro Poético

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Com todos na mesma sala e o microfone de Dylan constantemente ligado, é possível ouvir uma imperfeição técnica que garante uma experiência quase transcendental. Em algumas partes instrumentais, é possível ouvir Bob respirar calmamente, pegar fôlego para iniciar o canto ou suspirar ao final de uma frase. É esquisito e imperfeito, mas ao mesmo tempo intimista e transparente.

Se Bob Dylan usa óculos escuros para cobrir a verdade dos olhos, em Shadows in the Night ele faz questão de que todos ouçam suas verdades nas palavras, sons e silêncio.

A Revisitação do Inusitado (ou a Comprovação da Competência)

O repertório é algo que chama a atenção desde o início. Com exceção da última faixa do disco, “That Lucky Old Sun”, que Dylan já cantou outras vezes, todas as outras músicas são canções inicialmente de jazz e com o universo que, ironicamente, era justamente aquele combatido por Dylan no início de sua carreira folk.

Há quem diga que Bob não quer que Shadows in the Night seja conhecido como “Dylan canta Sintara”, mas apenas uma interpretações de canções que Bob conhecia há muito tempo e resolveu, segundo ele próprio, “desenterra-las. Tirando-as do túmulo e trazendo-as para a luz do dia”.

Mas podemos fazer outra leitura também: Bob Dylan já flertou com esse ambiente intimista e jazzy. Na turnê de 1995, experimentou cantar com sutileza, deixando os arranjos das canções como uma neblina da madrugada, enquanto as palavras que se ouvia não era do cantor, mas do próprio pensamento da noite. Em 2004, homenageou o Teatro Apollo ao lado de Wynton Marsalis para uma interpretação na companhia de uma big band. E em 2009, presenteou a todos com um disco natalino.

Neste último, muitos criticaram a atuação de Bob. Um crítico chegou a afirmar que o timbre de voz, rouco e rasgado, parecia mais uma ameaça do que um convite. Apesar de manter a voz rasgada em Tempest, a turnê de 2013 apresentou um Dylan mais calmo, tentando achar timbres mais aveludados em sua voz.

Talvez estivesse se preparando para este projeto, tão audacioso quanto belo, tão imperfeito quanto verdadeiro e tão perfeito como a vida, apesar de todos os pesares.

E, mais uma vez, Bob Dylan surpreente a todos. Para aqueles que querem o mesmo Dylan de sempre, uma frustração imediata. Para quem está de peito, e ouvido, aberto à novidades e experimentações, um prato cheio de sentimentos.

8 thoughts on “Resenha: Shadows in the Night

  1. Belo relato emocional e sincero desse registro inusitado,ousado,complexo e cheio de alma. Impressionante do que Dylan tem sido capaz de fazer nesses últimos discos. E quem fica querendo o “Dylan de sempre” (o que seria isso, afinal de contas?) que fique ouvindo “Blowin in the wind” num toca fitas antigo. Me interessa,e muito,o que ele vem fazendo atualmente. “Tempest” se agiganta a cada nova audição(e eu ouço sempre), pra mim um dos grandes discos da década já. O velho tem tanta lenha pra queimar ainda que deixa qualquer fã animado.

    1. Exatamente!
      Ele ainda não se conformou com a carreira que construiu e quer sempre mais.
      E a gente só tem a agradecer.

      Abração, Gabriel!

  2. Mal posso esperar para escutar. O trabalho dele nesses últimos anos é mais que exemplar, ele não cansa, não se resigna, não se repete! Dylan tem muito o que ensinar para a música e músicos contemporâneos.

  3. Seria ótimo se a capa do encarte para o cd coubesse no box.. Ham?! Desde ontem, depois de baixar :), enchendo a paciência do pessoal de casa, escutando direto.

    As pessoas se surpreende pq sou tão fã de Bob Dylan, escutar os discos é como se fosse as releituras daqueles livros que levamos pra toda vida (pessoalmente falando, claro), seja considerando ora o fator lúdico, o fator emocional, o conhecimento. ..a música e a literatura como no sexo, proporciona um prazer sem igual, que individualmente pode não significar nada (e pra muitos é isso mesmo: Nada).

    1. Escutei inúmeras vezes nos últimos dias tb, Marcelo.

      Nem todo mundo entende o universo dylanesco, mesmo. Acho que a música faz um caminho único para cada pessoa (alguns prestam atenção na técnica, ou na melodia, ou na letra). Com Dylan, a gente tb presta a atenção em coisas como essas, mas talvez estejamos mais conectados com uma transparência, saca? Como se buscássemos a verdade absoluta, seja lá como ela for.

      Abração!

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