
Desde 2011 escrevo no dia 24 de maio um devaneio sobre Bob Dylan. Para além das festas, penso nos aniversários como um momento de reflexão. É desse jeito que costumo fazer com os meus e foi como imaginei fazer com os de Dylan.
Assim, é impossível dissociar este balanço reflexivo com nosso contexto atual. Vivemos uma pandemia quase incoerente – um vírus que se desintegra com água e sabão, mas que chega a matar 1.000 brasileiros em um dia. O isolamento imposto pelo coronavírus pode flertar com a solitude, mas seu perfil coercitivo nos faz claustrofóbicos – cada um a sua maneira.
Em meio a tudo isso, talvez tenha sido a primeira vez que realmente me peguei imaginando como Bob Dylan passa seu aniversário. Quase em tom de fiscalização, me peguei questionando coisas como: será que ele está se cuidando, lavando as mãos, usando máscara e assim por diante.
O fato é que pouco sabemos da vida íntima de Dylan – às vezes as informações vem à tona décadas depois. E pouco importa também. É necessário entender que o Dylan que conhecemos, e que admiramos, é o Dylan do palco, do estúdio, das letras e canções. Não é o avô, pai ou amigo confidente.
Com o distanciamento, vivemos em um reality show generalizado, com todos transmitindo suas casas como cenário. A ideia de uma live dylanesca nunca passou na minha cabeça – tamanha invasão é absurda diante do seu histórico recluso. Mas ganhamos uma mensagem divulgada em conjunto com o lançamento “Murder Most Faul”.
“Saudações para meus fãs e seguidores com gratidão por todo seu apoio e lealdade durantes os anos. Esta é uma canção inédita que gravamos há algum tempo e vocês talvez achem interessante.
Fique seguro, fique atento que Deus esteja com vocês.”
“Murder Most Faul” veio a público no dia 27 de março. Três semanas depois ouviríamos “I Contain Multitudes” e seguidos outros 21 dias receberíamos “False Prophet”. Junto com a última música, chegou a informação de que teríamos outras sete faixas inéditas – pelo menos até pessoas como Scott Warmuth vasculhar o mundo atrás de referências, influências e dialogismos.
As três novas canções apontam muitos pontos interessantes. O mais óbvio é o retorno a composições próprias. Também é interessante observar como as duas primeiras absorvem a recente fase jazzística para criar algo diferente. É um estilo que dialoga com os últimos discos de cover, mas que não os repete. Há o clima, mas o cenário é diferente.
Desde 2015, Bob Dylan se propôs a garimpar o cancioneiro norte-americano para entender suas entranhas harmônicas, suas intonações vocais e todo o sentimento que muitas gerações receberam incessantemente. Gostemos ou não do resultado, colheremos em breve o fruto dessa imersão.
E agora me vem a mente: há aqui a maneira Dylan de compartilhar sua intimidade.
Ele não permite a entrada da mídia em sua casa. Não distribui pelo mundo entrevistas e é raro vê-lo no palco falar algo que não seja sua música. Mas é inquestionável sua disposição de tornar seu trabalho um livro aberto. Nesses lançamentos de jazz, ele se propôs a uma imersão descobridora e permitiu que nós fôssemos testemunhas. E agora, aos 79, divulgará os resultados dos aprendizados dos últimos anos.
Com “Murder Most Faul”, abre um pouco seu universo de referências e apresenta em forma de lista como tudo que absorve se torna uma colcha variada e colorida.
Enfurnado em casa, ouvindo as novas canções e suas listas e referências, me inspiro a fazer o mesmo. Não é nostalgia, mas uma revisitação sob o olhar atual. Não é reviver, mas reencontrar. Seja com livros, discos e até armários que há tempos não mexia, Bob Dylan me inspira a cerzir minha própria colcha de retalhos.
Parabéns, Dylan. Fique seguro, fique atento que Deus esteja com você.
Para ler textos de aniversários anteriores, acesse:
Bob Dylan, 78 anos (ou “Dignity never been photographed”)
Bob Dylan, 77 anos (ou “Olhando para trás”)
Bob Dylan, 76 anos (ou “O escultor sonoro”)
Bob Dylan, 75, e a ocupação em nascer
Bob Dylan, 74, e a Árvore da Música
Bob Dylan, 73, e o eterno estado de “vir a ser”