por Leca, publicitária morando na Bay Area, que adoraria voltar no tempo pra ver o Dylan tocar Hurricane ao vivo.
Chegamos ao Frost Amphitheater perto das seis da tarde. O portão já estava aberto, então, as filas que se formavam nas duas entradas do lendário espaço já estavam em movimento.
O público nelas era bem variado. Famílias, casais e até crianças aguardavam tranquilamente para entrar. Cobertores e cadeiras eram itens quase que obrigatórios, pois a noite prometia ser fria.
Na checagem de segurança, a primeira surpresa: Bob Dylan, em pessoa, havia solicitado uma mudança de última hora nas regras (já restritas) do local. Se antes não eram permitidas apenas câmeras com lentes removíveis, ele foi além e exigiu que nenhuma câmera entrasse no lugar para que não fossem feitos registros fotográficos naquela noite. Claro que, com celulares abrigando câmeras poderosíssimas no bolso de cada um ali, o pedido era algo difícil de controlar, por isso, a equipe de segurança apertou as regras e a câmera que levamos teve que ser guardada no porta-casacos do espaço. “Nós também fomos pegos de surpresa”, disse a atendente ao nos entregar a senha para a retirada pós-show. Não respondi, mas fiquei pensando que esse é o tipo de coisa que se pode esperar quando se abriga uma estrela dessa magnitude.
O anfiteatro Frost é um centro de eventos em que todos os lugares são privilegiados. Sua disposição tem o palco no espaço mais baixo e as arquibancadas naturais se elevando à sua frente. As árvores ao redor criam uma proteção para o ambiente, deixando o som ali dentro e o mundo externo lá fora, o que cria uma espécie de aura mística, digna do show que viria a seguir.
À frente do palco, praticamente todas as cadeiras que haviam sido colocadas já estavam tomadas. Decidimos ficar mais para trás, sentar na grama e curtir nosso vinho e queijo (comprados lá dentro, é claro, já que nenhuma garrafa era permitida no lugar) até o início do show.
Um cartaz informava que todos os ingressos para o espetáculo tinham sido vendidos. E a multidão se acomodando ao nosso redor confirmava isso: Bob Dylan tocaria para uma casa cheia em plena segunda-feira.
O show começou pontualmente às sete e meia. Quem deu as boas-vindas foram as luzes do palco, pois Bob Dylan pulou o cumprimento e foi direto para aquilo que sabe fazer de melhor: música.
Ele só para pra falar quando, lá pelo meio do setlist, apresenta a banda que toca com ele. Chega até a ser estranho, de tão inesperado que é, ver ele mudar do modo performance para o modo ser humano que reconhece e agradece os talentos ao seu lado.
E que banda, senhoras e senhores. Incansáveis, cada um parece ter o seu momento durante o show. Os dois guitarristas ganham solos emblemáticos, o baterista embala as canções mais agitadas. E Bob Dylan? Bem, ele deixa a gaita um pouco de lado para se divertir com o piano armário, tocando de forma entusiasmada várias das canções. Sentado ou em pé, Dylan estava performático essa noite.
Seu traje brilhava enquanto ele se dedicava a interpretar as canções, em movimentos que não chegavam a ser exatamente uma dança, mas sim, a resposta natural do seu corpo a algo que ele faz com muito gosto, até hoje.
Tendo visto Bob Dylan em São Paulo em 2012, é impossível não comparar as duas apresentações em termos de voz. E, sabe-se lá que milagre, remédio ou exercício vocal Dylan andou fazendo, mas foi com muita alegria que pudemos ouvir sua voz em excelente estado. A rouquidão deu lugar a uma experiência quase cristalina, sendo possível entender não apenas as palavras, mas algo além, a dimensão que ele dava aos tons, alcançando diferentes notas e fazendo versões ao vivo de músicas já conhecidas soarem como novas. É difícil explicar. Mas dessa vez, banda e cantor estavam em uma sincronia tão perfeita que o show que ouvimos poderia tranquilamente ter saído de um álbum de estúdio.
No palco, além dele e a banda estavam apenas os manequins (???) alinhados na parte de trás e um busto de uma estátua no canto direito, à frente, próximo ao piano. Fora isso, a única “distração” era o trabalho das luzes, que transformava, criando texturas diferentes, o fundo do palco a cada música.
E talvez fosse o fato de que estávamos cercados de árvores em uma noite estrelada. Ou ainda, o impressionante momento, em 2019, em que não havia nenhum celular levantado na plateia (um ou outro corajosos arriscavam cliques muito rápidos e logo desapareciam), mas o show parece ter sido uma experiência quase que sobrenatural. Centenas de pessoas reunidas em uma clareira no meio da mata, sob as estrelas, para assistir a uma criatura que aparece, entrega uma experiência artística inesquecível, e, assim como veio, vai embora, deixando todos completamente transformados e se perguntando se tudo aquilo foi real.
Inclusive, como ele não se despede, o momento do bis é uma incerteza. Ele vai voltar? Ele não vai voltar? Felizmente, ele voltou, tocou mais duas músicas com a mesma energia das primeiras, deu as mãos para a banda, saudou nossa presença com uma reverência profunda (o que me deixou pensando sobre o fato do alongamento desse senhor de 78 anos ser melhor do que o meu) e partiu para estrada, rumo ao próximo show.
É isso que ele gosta de fazer. É isso que ele seguirá fazendo, até o fim dos dias.
Sorte daqueles que puderem presenciar esse momento ao vivo algum dia.
Entrar no universo de Bob Dylan pode ter regras rígidas e bem específicas, mas elas garantem, com toda a certeza, um show como nenhum outro na vida.
Setlist (por BobLinks):
- Beyond Here Lies Nothin’ (Bob center stage on guitar, Donnie on violin)
- It Ain’t Me, Babe (Bob on piano, Donnie on violin)
- Highway 61 Revisited (Bob on piano, Donnie on lap steel)
- Simple Twist Of Fate (Bob on piano then center stage on harp, Donnie on violin)
- Can’t Wait (Bob center stage, Donnie on lap steel
- When I Paint My Masterpiece (Bob on piano, Donnie on violin)
- Honest With Me (Bob on piano, Donnie on violin)
- Tryin’ To Get To Heaven (Bob on piano, Donnie on violin)
- Make You Feel My Love (Bob center stage, Donnie on pedal steel)
- Pay In Blood (Bob center stage, Donnie on lap steel)
- Lenny Bruce (Bob on piano, Donnie on violin)
- Early Roman Kings (Bob center stage, Donnie on pedal steel,
Tony on standup bass) - Girl From the North Country (Bob on piano, Donnie on violin,
Tony on standup bass) - Not Dark Yet (Bob center stage, Donnie on pedal steel)
- Thunder On The Mountain (Bob on piano, Donnie on lap steel)
- Soon After Midnight (Bob on piano, Donnie on lap steel)
- Gotta Serve Somebody (Bob on piano, Donnie on pedal steel)
(bis) - Ballad of a Thin Man (Bob center stage on harp, Donnie on lap steel)
- It Takes A Lot To Laugh, It Takes A Train To Cry
(Bob on piano, Donnie on lap steel)
Gostei desse texto da “Leca”, parabéns a ela.
Foi reverente e respeitosa com o artista, sem descambar para a bobajada, para a idolatria.
A “Leca” é a moça loira de costas usando a camiseta com os dizeres de 1975?
Se for, parabéns novamente, moça.