Refletindo sobre as atitudes recentes de Bob Dylan, devo alertar os leitores do Dylanesco: ele mentiu para nós. Desde os anos 60, cunhou não só um documentário como um estilo de vida. “Dont Look Back” era uma bandeira para se desprender das correntes do próximo passado em busca da construção de descobertas constantes. Décadas depois, no documentário No Direction Home, ele explicou que o artista deve sempre estar em um estado de transição, para nunca estacionar num único lugar.
Repito: ele mentiu para nós. Faz um bom tempo que Bob Dylan olha para trás, sem que a gente perceba com clareza. E aqui estão dois indícios recentes:
1) Clássicos da Literatura
Meticulosamente analisado por Richard F. Thomas, a relação de Bob Dylan com os clássicos gregos e romanos data desde a juventude de Bob Dylan, ainda na cidade de Hibbing. Nas primeiras composições, olha para Roma com grande admiração, mas é no segundo milênio que ele remete ao seus estudos da adolescência com mais afinco, dialogando com grandes clássicos e em boa parte das canções que escreveu.
(Leia mais sobre o livro de Richard F. Thomas: “Why Bob Dylan Matters”)
2) Clássicos do Jazz
Desde 2015, Bob Dylan usou suas visitas ao estúdio para gravar clássicos de jazz, a grande maioria já interpretados por Frank Sinatra. Além de ser uma iniciativa que distoa de sua carreira – sendo tratado nos anos 60 como uma solução contrária ao establishment da indústria da época -, Dylan devaneou com os sons que respirou, voluntária ou involuntariamente, em sua juventude. Apesar de fincar os pés na profissão de cantautor (singer-songwriter), Bob também olhou com carinho as poesias pop que sobrevovam ao seu redor.
Viu? Apenas dois exemplos recentes que comprovam minha opinião. Bob Dylan olha, sim, para trás.
… mas calma. Pensando melhor, talvez ele não esteja mentindo para nós.
Bob não tem desdém pelo passado, mas medo pelo canto da sereia Nostalgia. Não quer se aprisionar em um personagem do Dia da Marmota em que não consegue, de fato, viver coisas novas.
Para Dylan, viver o passado não é reviver o que passou, mas recriar os significados das lembranças. Ele rememora como se quisesse organizá-las e desorganizá-las ao mesmo tempo e ininterruptamente. Ele quer ressignificar suas experiências, tornando-as algo novo.
Talvez esteja aí a razão do seu repertório estático dos shows recentes. Talvez Bob Dylan esteja querendo esfregar o passado no presente através da repetição frequente.
Enquanto que muitos de nós tratamos o passado como um canto da sereia que nos aprisiona, Bob Dylan sabe se desviar da hipnose marinha para olhar para trás com a certeza de que já viveu, mas que há ainda muito o que viver – mesmo que seja contemplando, com uma nova ótica a cada momento, o passado.
Feliz aniversário, Bob.
Para ler textos de aniversários anteriores, acesse:
Bob Dylan, 76 anos (ou “O escultor sonoro”)
Bob Dylan, 75, e a ocupação em nascer
Bob Dylan, 74, e a Árvore da Música
Bob Dylan, 73, e o eterno estado de “vir a ser”
Bob Dylan, 72 anos: compreendendo Dylan
Os 71 anos de Bob Dylan (ou como ele nunca olha para trás)
Update: eis uma bela homenagem no Youtube, com Bob Dylan cantando “Old Rock ‘n’ Roller”, de Charlie Daniels Band, e introduzindo “Essa é para quem imagina o que acontece para pessoas como eu”.