Um rascunho de “Like a Rolling Stone” foi leiloado hoje pela Sotheby’s e bateu recorde de valor. As quatro páginas do hotel Roger Smith, de Washington, DC, rabiscadas por Bob Dylan foram vendidas a surpreendentes US$2,045 milhões (mais de R$4,550 milhões).
A quantia superou o último recorde de um manuscrito de música pop leiloado: a letra de “A Day In the Life”, de John Lennon, vendida por “apenas” US$ 1,2 milhões (cerca de R$2,67 milhões) em 2010.
Além do rascunho da letra final, o documento contém rabiscos, devaneios e letras não utilizadas (como “dry vermouth/You’ll tell the truth”, “it feels real”, “does it feel real”, “get down and kneel”, “raw deal” e “shut up and deal”)
No mesmo leilão, a letra de “A Hard Rain’s A-Gonna Fall” também foi vendida – US$485 mil (cerca de R$1,08 milhões).
Bob Dylan na Encruzilhada
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Muitos devem se perguntar: por que um manuscrito foi vendido por tanto dinheiro? A questão é tão simples quanto se questionar sobre os leilões de quadros. “Like a Rolling Stone” vai além da carreira e conjunto da obra de Dylan. A canção, lançada no disco Highway 61 Revisited, foi um marco quando lançada, em dia 15 de junho de 1965, por vários motivos.
Bob Dylan disse que escreveu “um vômito, que parecia ter 20 páginas”; Bruce Springsteen já declarou que o início da música soou como uma porta arrombada por um ponta-pé; A revista Rolling Stone (cujo próprio nome é uma possível referência) colocou a canção em primeiro lugar entre as 500 músicas mais importantes da história.
Até o momento, a única música do disco Tempest a receber um clipe foi “Duquesne Whistle”. Apesar da letra ser uma amável e nostálgica lembrança de um antigo amor, o vídeo conta a história de um obsessivo admirador-secreto que persegue sua amada até passar por maus bocados e ser largado na calçada em que Bob Dylan passeia com sua gangue bizarra.
O nonsense do vídeo e sua imperceptível ligação direta com a música fez com que um tal de Derek repensasse o clipe através de uma outra canção do disco: “Pay In Blood”.
A letra de “Pay In Blood” é muito mais sombria e complexa. Já existem algumas interpretações das possíveis referências usadas por Dylan para a compor.
Há quem acredite que seja uma continuação do narrador de “Mississippi”; outros pensam mais como um diálogo complexamente intercalado entre um escravo e seu patrão, um soldado e um político, um advogado e até o Governo; uma outra interpretação indica que seja uma crítica a pensões alimentícias e à ex-mulheres.
Entre as possíveis referências, Shakespeare (com “I came to bury not to praise” vindo da peça Júlio Cesar) e a Bíblia são os mais fortes candidatos.
No dia 5 de maio de 1903, nascia Blind Willie McTell. Oitenta anos depois e no mesmo dia, Bob Dylan terminaria a gravação de sua homenagem sonora ao bluesman de estilo único.
O músico
“Ele trata cada frase de sua música como uma entidade separada, com suas próprias rítmicas e melódicas nuances” – Woody Mann
“O estilo vocal e seu som se encaixam perfeitamente com aquela sonoridade solitária… Você provavelmente poderia dizer que ele é o Van Gogh do country blues” – Bob Dylan
William Samuel McTier nasceu no sulista estado de Georgia no dia 5 de maio de 1903 – o dia é indiscutível, mas o ano é motivo de discordância entre os estudiosos. O palpite de Michael Gray, biógrafo do músico, é tido como o mais correto (e foi o utilizado para o cálculo do título).
Cego desde o início da infância, aprendeu a tocar violão com a mãe por volta de 1914 e passou a se apresentar em estacionamentos e shows itinerantes – tanto para públicos negros quanto brancos. A partir de 1927, iniciou uma carreira de nove anos de estúdio, lançando 24 discos para quatro gravadoras diferentes. No seu repertório, blues, hinos e folks, além de ragtimes, baladas e canções populares.
No livro Bob Dylan in America, Sean Wilentz retrata a história de McTell e faz ótimas comparações com a vida de Dylan. Na canção “Statesboro Blues”, por exemplo, Willie canta “My mother died and left me reckless, my daddy dies and left me wild, wild, wild”. Segundo o dylanófilo e biógrafo do bluesman Michael Gray, apesar de o pai tê-lo abandonado antes dos sete anos de idade, Blind Willie parece ter vivido com sua mãe uma vida tranquila e sem grandes traumas em Statesboro; assim como Dylan, que forjou uma infância de andarilho e até citou ser orfão para criar uma imagem que fizesse jus às canções que interpretava.
Em 1922, dois anos após a morte de sua mãe, um branco de sobrenome Simmons arranjou para o jovem McTell, agora com 19 anos, uma vaga em uma escola para cegos em Macon. Lá, aprimorou suas habilidades como guitarrista e cantor, além de aprender a ler e a escrever música em Braille.
Além da bela e distinta voz, Blind Willie McTell tinha grande habilidade com slide e violão de doze cordas. Ao contrário de outros ícones do blues, McTell nunca seguiu o caminho de um mito: não há acordos diabólicos, brigas homéricas ou morte precoce em seu histórico. Blind Willie viveu uma vida tranquila na região de Atlanta e morreu em 1959, aos 56 anos, após dois derrames cerebrais.
Nunca obteve grande sucesso, mas passou a ganhar relevância após os relançamentos de suas gravações. No início dos anos 70, ganhou destaque após o Allman Brothers gravar “Statesboro Blues”. Para Wilentz, parece ter sido nesta época, quando houve diversos relançamentos dos fonogramas de McTell, que Bob se interessou mais pela discografia do bluesman. “Para Dylan, a música de McTell se tornou um critério, um padrão de excelência para compreender o mundo”.
A música
Na segunda semana de abril de 1983, Bob Dylan entrou em estúdio para gravar o que seria seu primeiro disco após a “fase cristã” (que rendeu três álbuns entre 1979 e 1981: Slow Train Coming, Saved e Shot Of Love). Para acompanhá-lo, Dylan recrutou Mark Knopfler (que já havia colaborado em Slow Train Coming), o ex-Rolling Stones Mick Taylor e outros. O local escolhido para a gravação foi o Power Station, no West Side de Manhattan.
Já no primeiro dia, Bob Dylan reservou quase todo o tempo para gravar “Blind Willie McTell” com a banda. O resultado, apesar de alguns belos momentos na interpretação de Dylan, é uma versão amorfa, com cada integrante percorrendo um caminho distinto.
Talvez pela frustração, Bob Dylan adiou o término da canção para o fim das gravações. No dia 5 de maio, decidiu ser acompanhado apenas pelo violão de Mick Taylor.
No piano e fazendo uma leve marcação com os pés, Dylan trouxe uma nova ambiência para “Blind Willie McTell”, tornando-a melancólica e precisamente empoeirada. Mesmo assim, preferiu não incluí-la em Infidels. A música, considerada uma das obras primas de Dylan nos anos 80, só viria oficialmente a público (depois de rodar pelos fãs através de bootlegs) em 1991, no volume 1-3 do Bootleg Series.
A estrutura da música é diretamente influenciada pela tradicional “St. James Infirmary” – que Blind Willie também utilizou para fazer “Dying Crapshooters Blues”. A letra de Dylan mostra um narrador em um hotel de New Orleans lembrando de toda a desgraça na história do Sul americana e expandindo para uma avaliação na corrupção humana. Ou, nas palavras de Michael Gray:
“Dylan alcança uma lamentação que serve para celebrar tanto a calamidade pública quanto o legado individual; para lidar com as desolações que estão por vir – ‘all the way from New Orleans to Jerusalem’ – e da morte de Blind Willie McTell”.
Apenas um adendo: a frase que dá título a canção não deve ser interpretada de maneira equivocada. Dylan não diz que McTell é o melhor cantor de blues, apenas que seu estilo é único.
Esponjas
Curiosamente, Blind Willie McTell já foi comparado a uma esponja por conseguir se apropriar de todo o tipo de música e reinterpretá-la a sua maneira – comparação essa também utilizada por aqueles que conviveram com Dylan no início dos anos 60. Tanto Bob quanto Willie não eram tão preocupados em dar os devidos créditos de suas fontes.
A influência de McTell sobre Bob Dylan ficou ainda mais evidente 10 anos após gravar “Blind Willie McTell”. No álbum World Gone Wrong, de 1993, Dylan escolheu “Broke Down Engine” para entrar no disco de covers.
“Blind Willie McTell”, versão 2012
No início de 2012, Bob Dylan escolheu esta canção para homenagear Martin Scorsese no Critics’ Choice Awards.