Resenha: Why Bob Dylan Matters (ou Dylan goes academic)

“Poetas imaturos imitam; poetas maduros roubam; poetas ruins desfiguram o que pegam e poetas bons transformam em algo melhor, ou pelo menos diferente. O bom poeta amalgama seu furto a um conjunto sensível que é único, completamente diferente daquele de onde foi removido; o poeta ruim joga isto em algo que não tem coesão. O bom poeta normalmente irá pegar emprestado de autores de outros tempos, ou fora da linguagem, ou com outro interesse.”
T.S. Eliot, Prêmio Nobel de Literatura em 1948

Na minha biblioteca dylanesca, são raros os livros, até mesmo os recentes, que se debruçam a entender e decodificar a obra de Bob Dylan dos últimos 20 anos – desde seu “retorno” com Time Out Of Mind, de 1997. Várias razões explicam e talvez a principal seja a dificuldade em analisar o presente, mas é preciso destacar que entre os artistas de sua geração, Bob Dylan é um dos poucos, senão o único, que ainda tem uma produção relevante e mutante, alimentando sua biografia para além de uma nostalgia.

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“Why Bob Dylan Matters”, contudo, coloca um microscópio meticuloso sobre a obra dylanesca recente, focando principalmente na sua relação com a Literatura Latina e o uso dessas obras através do intertexto – técnica tão clássica quanto popular. Seu autor, o australiano Richard F. Thomas, tem um currículo que o coloca como pessoa ideal para análise. Fã de Bob Dylan desde os 12 anos, saiu da Nova Zelândia para os EUA para estudar literatura clássica, seu objeto de estudo há 40 anos, na renomada universidade de Harvard. Leu os grandes ícones enquanto testemunhava a exímia poesia dylanesca se desenvolvendo.

Apesar da grande admiração, o estalo entre os dois temas só veio em 2001, com o lançamento do disco Love & Theft. Nele, um trecho de “Lonesome Day Blues” faz menção a um texto de Virgílio, autor latino que viveu no último século antes de Cristo. A partir da descoberta, Richard passou a garimpar a relação entre Bob Dylan e a literatura latina e encontrou ótimos indícios:

“I’m gonna spare the defeated – I’m gonna speak to the crowd
I’m gonna spare the defeated, boys, I’m gonna speak to the crowd
I’m goin’ to teach peace to the conquered
I’m gonna tame the proud” – Bob Dylan, “Lonesome Day Blues”

“but yours will be the rulership of nations,
remember Roman, these will be your arts:
to teach the ways of peace to those you conquer,
to spare defeated peoples, tame the proud.” – Virgílio, Eneida

“Going Back to Rome”

Ao longo do livro, o autor levanta inúmeras referências à cultura romana que Dylan fez em toda sua carreira – letras, histórias e até pistas em entrevistas – com uma maior frequência a partir de 1997.

Um dos indícios mais antigos é o registro de que Bob Dylan, ainda Robert Zimmermann, se interessou por cursos ligado à literatura latina na escola. Outra pista é fornecida no começo da carreira folk, quando Bob compõe “Going Back to Rome” e entoa a seguinte frase:

I’m going back to Rome
That’s where I was born

Assim, a partir de uma leitura tão perspicaz academicamente quanto intrigantemente poética, Thomas traça um paralelo sobre as inúmeras migalhas que Dylan jogou no seu trajeto artístico, indicando sua admiração e referência à Roma antiga.

Intertexto como transfiguração

Outra grande contribuição que Thomas faz é sobre as acusações de plágio ao longo de toda a carreira de Dylan. Usando de argumentos precisos e ricas referências – como o trecho de T.S. Eliot que introduz esta resenha – “Why Bob Dylan Matters” mostra tanto a comprovação da “licença poética” quando o virtuosismo de Bob ao se apropriar da obra do outro. Mais do que dialogar com outros artistas, Bob Dylan se dispõe a revisitar o passado sem que a nostalgia paralítica impregne o resultado.

Tal virtuosismo dylanesco na apropriação “indevida” é exaltado e defendido de maneira categórica por Thomas. Como se brincasse com o tempo-espaço de Einstein, Bob Dylan consegue colocar no mesmo balaio poetas romanos, escritores esquecidos do século passado, cânticos da cultura americana e até um best-seller japonês. Como bem disse T.S. Eliot, o roubo do bom poeta se faz pertinente na ressignifcação.

Mais do que o dialogismo de tempos distintos, o livro ilustra bem a paixão de Dylan pela mensagem e pela palavra. E talvez aí esteja seu fenômeno: filho direto do rock’n’roll dos anos 50, Bob conseguiu criar um amálgama único entre a atitude rock, a vida retratada no folk/blues e a beleza das histórias clássicas. E é essa tríade que faz de Dylan ser quem é e merecedor do que obtém.

Intratextos dylanescos

Diante de sua meticulosa análise quase forense, Richard F. Thomas faz descobertas muito interessantes. Sempre embasado, mas sem parecer enjoativo, ele nos coloca visões reveladoras sobre alguns aspectos, como (sem spoiler!):

  • Relação íntima na narrativa de “Highlands” e “Tangled Up in Blue”;
  • Como Dylan dá atenção à memória, lembrança, passado e saudades – e ainda assim não faz com que sua obra seja nostálgica como imaginaríamos;
  • O apreço pelas tríades – em discos, shows, discursos e afins.

Conclusão

Trata-se de um dos melhores livros que já li sobre Bob Dylan. Não é para principiantes, cujo foco é ter uma noção puramente biográfica. É para quem já está familiarizado com a obra dylanesca e seus feitos – inclusives os recentes.

Outro ponto interessante é o fato de ter sido feito por alguém que já defende Dylan dentro do mundo acadêmico e escrito após o Nobel de Literatura de 2016 – tema do qual Thomas traz detalhes e visões intrigantes, que divertem o leitor.

Para facilitar a leitura, montei duas playlists com conteúdos do Spotify e Youtube citados no livro:


Ainda não há uma previsão de tradução, mas espero que venha logo para o mercado editorial brasileiro.

Título: “Why Bob Dylan Matters”
Autor: Richard F. Thomas
Editora: HarperCollins
Páginas: 323

Update:

Richard F. Thomas participou de um programa especial da rádio portuguesa Antena 3 chamado “Bob Dylan – o poeta que nunca acaba”, apresentado por Mariana Oliveira e com a participação também de António Feijó (professor de literatura), Pedro Mexia (poeta e crítico literário), Samuel Úria (músico), Sean Wilentz (historiador; autor de Bob Dylan in America) e Tiago Guillul (músico).

Ouça aqui:

Bob Dylan ganha “biografia filosófica”

Bob Dylan - A liberdade que canta

Que a arte de Bob Dylan é complexa e dialoga com vários pensamentos, contextos e obras não é uma grande novidade. Essa é uma das razões que o levaram a ganhar o Nobel de Literatura e a ser considerado o porta-voz da luta pelos Direitos Humanos nos anos 60 – apenas para citar duas referências óbvias.

Escrito pelo filósofo Daniel Lins e recém-lançado pela Editora Ricochete, “Bob Dylan, a liberdade que canta” foca na relação da trajetória do artista com obras de Deleuze e Nietzsche, além de rever o caminho trilhado por Dylan através de referências como Rimbaud, Baudelaire, Whitman e obviamente os grandes autores da literatura beat, como Kerouac e Ginsberg.

Olhando o percurso dylanesco, Lins observa correlações com obras aparentemente distintas, mas conectadas com uma mesma visão. A ideia do livro não é indicar apenas as referências citadas por Dylan (principalmente em Crônicas, Vol.1), mas mostrar o alcance do seu pensamento e a consonância com grandes pensadores da história.

Por conta de pormenores pouco relevantes e na maneira como é analisada, a leitura de “Bob Dylan – A liberdade que canta” às vezes se arrasta. Ainda assim é interessante ver as relações que Lins faz nesse ensaio de quase 600 páginas.

Escrever um livro sobre Dylan nesses moldes de diálogo não é inédito. Lembro de cinco obras com vertentes distinas: “Out of the Dark Woods”, do Dr. A.T. Bradford se propõe a mostrar a relação das canções de Bob Dylan com o Cristianismo; “Bob Dylan – Prophet, Mystic, Poet”, de Seth Rogovoy, aplica o mesmo formato com foco no Judaísmo; em “Dylan’s Visions of Sin”, Cristopher Ricks analisa a maneira como Bob Dylan trabalha os sete pecados capitais; “Light Come Shining”, de Andrew McCarron, propõe a montar um virtuoso perfil psicanálitico de Bob Dylan e seus “gatilhos” em momentos cruciais na carreira; por último há “Bob Dylan and Philosophy”, editado por Peter Vernezze e Carl J. Porter, que compila diversos textos que discutem o universo dylanesco a conceitos filosóficos como liberdade, moral, verdade e autores como o já citado Nietzsche.

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Mas isso não descredita “Bob Dylan – A liberdade que canta”. O livro de Daniel Lins é interessante por estabelecer esses diálogos num âmbito mais denso. Também é interessante por trazer algumas referências brasileiras. É uma ótima opção para quem não tem tanta intimidade com livros em inglês.

Não concordo com tudo o que Lins escreve e acho que muitas vezes ele usa como uma verdade frases de Dylan que possuem um contexto mais complexo e multifacetado. Principalmente nas entrevistas dos anos 60, é preciso ter em mente a relação ácida que ele tinha com a imprensa – que não entendia a a intenção de Dylan, aproximando a linguagem literária com a música. O mesmo pode ser dito sobre a Crônicas Vol.1, uma “pseudo-autobiografia”.

(Também não concordo com tudo o que ele diz. No vídeo abaixo, ele diz que Bob Dylan deveria se aposentar. Discordo completamente, mas não vou me alongar a respeito).

Ainda assim é uma leitura que instiga à reflexão ao mesmo tempo que ilustra a riqueza e complexidade da obra dylanesca ao longo dos anos.

Para conhecer um pouco sobre a visão de Daniel Lins, aqui está um bate-papo dele com Marcia Tiburi em que falam sobre Dylan, Deleuze e muitos conceitos filosóficos do rock.

Resenha: The Lyrics

The Lyrics

No dia em que Bob completa 53 anos do seu primeiro show em New York, eis que sou contemplado com o compêndio máximo da literatura dylanesca. Maior que uma capa de vinil, quase mil páginas e um peso proporcional à relevância de Dylan: The Lyrics.

O livro, lançado no dia 28 de outubro pela Simon & Schuster, foi editado por Christopher Ricks (acadêmico com publicações sobre Dylan), Lisa Nemrow e Julie Nemrow.

The LyricsThe Lyrics tem 926 páginas e pesa pouco mais de 6kg. Com um formato um pouco maior que uma capa de disco, um dos diferenciais deste livro para as outras compilações líricas de Dylan é a inserção da capa e contracapa de todos os discos, incluindo os textos originais (algo similar ao Box of Vision).

As letras são distribuídas em ordem cronológica de lançamento, mas também foram incluídas canções nunca lançadas oficialmente. Na introdução, Ricks deixa claro três pontos importantes: primeiro que as letras contemplam todos os discos, desde 1962; segundo que a publicação oferece variações cantadas por Dylan ao longo dos anos (inexistente em compilações anteriores); e terceiro que as estrofes e versos são diagramados tendo como base a forma como Bob cantou.

Outro detalhe bem relevante: as letras de Tempest, último disco de inéditas de Dylan até o momento, foram transcritas e passaram pela aprovação de Bob (nem no site oficial existe a letra). Isto significa que é a primeira vez que podemos ter certeza do que é cantado em Tempest.

Conclusão

Writings & Drawings (1973) e The Lyrics (2014)
Writings & Drawings (1973) e The Lyrics (2014)

The Lyrics é um compilado relevante e necessário para qualquer fã dylanesco. Entre o primeiro livro com letras, intitulado Writings & Drawings (com dedicatória e ilustrações de Bob), até esta última publicação, Bob Dylan se afastou da tarefa, mas deixou a cargo de pessoas competentes. The Lyrics consegue respeitar não só o legado do artista com também parte da sede por conhecimento e referência de seus fãs.

Apesar de imponente e belíssimo, o tamanho do livro dificulta seu uso. Outro ponto fraco, ao meu ver, é o papel manteiga que cobre a capa. A ideia é boa e bela, mas fica óbvio a iminência de rasgos e amassados.

Mas isso não diminui o exímio e meticuloso trabalho.

Abaixo, algumas fotos (em baixa qualidade) das páginas.

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