Resenha: Triplicate (ou “The Old, Weird America Pt. 2”)

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Eis que Bob Dylan apresenta seu terceiro disco seguido com standards de jazz. E ainda conseguiu inovar: lançou seu primeiro disco triplo. Triplicate consite em 30 canções divididas em três temas principais: ´Til The Sun Goes Down, Devil Dolls e Comin’ Home Late.

Ouvir Triplicate é uma viagem interessante. São 96 minutos de uma música que, mesmo após dois discos, ainda surpreende por vir de quem vem. É inegável o esforço e esmero que Bob teve para fazer essas gravações, com interpretações e arranjos meticulosos e precisos. Os causos clássicos de Dylan no estúdio sempre ilustram um artista que gosta do aqui-e-agora da interpretação, evitando arranjos pré-definidos e valorizando o instinto e impulso artístico seu e dos músicos. Nos últimos lançamentos, contudo, Dylan se forçou a respeitar o arranjo e seguir conforme o combinado – ele mesmo disse que deixou os improvisos de lado. O resultado? Um novo artista. De novo.

Leia também: “4 razões para descartar e 5 razões para ouvir Triplicate”

Testemunhar o nascimento de uma nova fase, o Bob Dylan crooner que está na ativa desde Shadows In The Night (mas com algumas aparições em 1970 e 1995) é uma antítese do seu passado sessentista, quando era o ícone da função singer-songwriter (ou cantautor), criticando as canções produzidas por compositores relativamente anônimos para cantores famosos. Agora, como se quisesse fazer as pazes com atritos do passado e redescobrir a si próprio, Dylan mergulha na função de ser um mero intérprete – com possíveis requintes de crueldade: bem lembrou Carl Wilson do discurso que Bob deu no MusiCares de 2015, mesmo ano do lançamento de “Shadows…”:

“Os críticos pegam pesado comigo desde primeiro dia. Os críticos dizem que eu não sei cantar. Que eu coaxo. Que pareço um sapo. Por que os críticos não dizem o mesmo sobre Tom Waits? Os críticos dizem que minha voz é um soco. Que eu não tenho voz. Por que eles não dizem essas coisas sobre Leonard Cohen? Por que eu recebo tratamento especial? Os críticos dizem que eu não consigo segurar uma canção e que eu falo durante a canção. Mesmo? Eu nunca ouvi isso sobre Lou Reed. Por que ele é isento? Que eu enrolo minhas palavras, não tenho dicção. Vocês já ouviram Charley Patton ou Robert Johnson, Muddy Waters? ‘Por que eu, Senhor?’, eu diria a mim mesmo.”

Talvez aí esteja uma das funções das 52 músicas gravadas por Dylan nos últimos três anos: mostrar que ele não é “““apenas””” um poeta laureado qualquer, mas um cantor único.

E ao fazer isso, Bob Dylan revisita a história da America através dos standards da primeira metade do século XX. É como em Basement Tapes, em que a arte de Dylan começa na curadoria dos documentos históricos, mas dá sua maior contribuição na maneira como interpreta as canções, se apropriando, impondo e incorporando uma entidade maior que si mesmo e em homenagem a quem sempre amou: sua eterna Musa, a música.

No caso de Basement Tapes, o resultado descrito por Greil Marcus é um mundo próprio, um universo paralelo em que o passado e presente se transformam em um amálgama atemporal, ora caótico, mas extremamente simbólico e artístico. Já em Triplicate o esmero está em redescobrir a essência da palavra, através de fraseados e nuances na interpretação que ressignificam a própria canção (ato não tão incomum para Dylan).

Talvez para reforçar o valor da obra, Triplicate vem com uma resenha escrita pelo renomado autor Tom Piazza (que tem uma extensa bibliografia voltada ao jazz). Nela, Tom esmiuça a importância do álbum até mesmo para os standards, elogiando a maneira como Bob traz uma nova energia para as desgastadas canções.

Porém, é preciso jogar limpo: sentimos falta do Dylan compositor; do Dylan e seu repertório variado; Dylan e seus improvisos. Para manter a esperança, é bom pensar que este álbum triplo tem como finalidade a conclusão de um intercâmbio dylanesco. Agora é torcer para que uma nova safra de canções ganhem vida – se é que já não existem. Enquanto isso, há uma viagem de trinta faixas e 96 minutos que vale a pena curtir cada momento.

O Greenwich Village de Bob Dylan (ou Sons da Cena de 1961)

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Bob Dylan chegou à New York em uma terça-feira, 24 de janeiro de 1961. Foi direto para o bairro de Greenwich Village (atraído pelo aluguel barato e pela atmosfera boêmia e estudantil) e já em sua primeira noite, vagueou pela MacDougal Street e entrou no Café Wha?, onde tocou duas músicas de Woody Guthrie.

No domingo seguinte e em diversas outras ocasiões, Bob Dylan visitaria Woody – internado no Greystone Park Psychiatric Hospital – e passaria a conviver com pessoas que também celebravam a música de Woody, como Bob Gleason, Ramblin’ Jack Elliot e Pete Seeger.

Quase imediatamente, Bob passou a integrar a “gangue” dos músicos de Greenwich Village que tocavam em todos os bares possíveis e que, depois das mini-apresentações, passavam um cesto para conseguir alguns trocados.

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Nessa época, várias testemunhas viam Bob sempre calado, mexendo ansiosamente a perna, observando tudo que via em sua volta. Ganhou o apelido de “esponja” e absorveu várias coisas que via no dia a dia – sotaque e novos acordes de uns; dedilhados e canções desconhecidas de outros (como a história do “empréstimo” que Dylan fez da versão de “House Of The Rising Sun” de Dave Van Ronk – e que depois seria usada também pela banda Animals).

Neste tempo e espaço único, com o movimento de Folk Revival começando a borbulhar ao lado do jazz, blues e poesia beat do Greenwich Village, Bob Dylan recebeu uma enxurrada de informações e referências que seriam cruciais para muita coisa: do fraseado poético ao encontro com Woody Guthrie, o contrato com John Hammond e muito mais.

Sons da Cena de 1961

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Apesar de Greenwich Village ocupar um pequeno trecho do sul da ilha de Manhattan, ela tem um bom pedaço do espaço emocional para Bob Dylan e seus fãs. Com base nessa relevância, a gravadora Chrome Dreams e o editor da revista ISIS Derek Barker fizeram uma compilação que ilustra bem o contexto em que Bob Dylan mergulhou (e ainda assim conseguiu se diferenciar).

São 50 faixas do mais variado conteúdo. Há Pete Seeger e Woody Guthrie como a base de muita coisa; temos contemporâneos do Folk Revival como Dave Van Ronk, Ramblin’ Jack Elliot e The New Lost City Ramblers; temos a poesia de Allen Ginsberg e as piadas de Lenny Bruce; blues que vão de John Lee Hooker e Big Joe Willams a Lonnie Johson e Josh White. E por aí vai…

Derek afirma que não foi sua intenção, mas ao garimpar as canções que compõe o CD Duplo percebeu que muitas músicas já foram interpretadas por Dylan ao longo das cinco décadas de carreira. Outro ponto bem interessante são releituras feitas por Dylan a partir de letras e melodias, é o caso de “Nottamun Town” (para “Masters Of War”) e “Who’s Gonna Buy Your Ribbon” (para “Don’t Think Twice, It’s Alright”), por exemplo.

Ouça no Spotify (e aproveite para seguir o perfil do Dylanesco) ou compre o CD aqui.

Análise de “Ballad Of a Thin Man”

Updade (2024): comecei um podcast para abordar diversos temas. São episódios curtos com informações e análises e um dos primeiros é sobre essa canção. Conheça o Podcast Dylanesco, disponível no Spotify, Amazon Music, Apple Podcast e Youtube. Ah, aproveita e segue no Instagram também: @dylanesco. 

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A pergunta mais óbvia que se faz depois de ouvir “The Ballad Of a Thin Man” é: quem é o tal Mr. Jones? Porém, muito mais do que saber seu primeiro nome ou seu semblante, a canção explora um dos maiores arquétipos de Dylan. “Um observador que não vê, uma pessoa que não faz as perguntas certas”, segundo um dos dylanescos-mor, Robert Shelton. Por isso, que tal uma imersão nessa canção que pouco saiu do repertório de Dylan desde 1965?

Something is Happening: Contexto

Desde quando Bob Dylan estava inserido apenas na cena Folk, com canções como “Blowin’ In The Wind”, “A Hard Rain’s A-Gonna Fall” e “It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding)”, já havia uma condecoração nobre: um poeta profético. Após os discos elétricos, seu público aumentou consideravelmente e junto com ele houve uma inflação na sua reverência, sendo promovido a termos como “Porta Voz da Geração”.

Além da especulação quase divina em relação à Dylan, outro ponto importante era o próprio jornalismo da época. As primeiras revistas dedicadas ao rock estavam apenas começando e muitas publicações mais tradicionais ainda não sabia lidar com o aumento de relevância do estilo e sua aproximação a uma poética mais ousada, engajada e complexa. O despreparo e falta de imersão geraram algumas perguntas absurdas e necessidade de um rótulo de algo que ainda estava em transformação. Seus registros são no mínimo curiosos:

Os exemplos acima mostram parte do cotidiano de Bob quando estava em turnê ou divulgação de novidades (com lançamentos a cada 3 meses entre 62 e 66, contando álbuns e singles). Uma hora é preciso revidar, certo?

Nobody Has Any Respect: Conteúdo

Com um nome possivelmente baseado na franquia de comédia dos anos 30 e 40 “Thin Man”, que em 1947 lançou o filme “The Song of the Thin Man” (o que, ao meu ver, não é preciso ter de muita reflexão sobre o título, sendo apenas uma curiosidade. Como é possível ouvir na versão Deluxe do Bootleg Series Vol.12, Dylan costumava batizar as canções com palavras praticamente aleatórias. Neste caso, Dylan diz no começo do take 1 “Esta se chama “Ballad of a Thin Man, Parte 1”), a canção é descrita por Oliver Trager como uma versão dylanesca para O Processo, de Kafka, em que Mr. Jones está preso no absurdo e é julgado em um meio que ele desconhece.

Para Mark Polizzotti, “Thin Man” segue a mesma linha acusatória de “Like A Rolling Stone” e “Positively 4th Street”, mas dessa vez Dylan é o grande inquisitor, distante e implacável.

Mr. Jones é um homem comum, de família rica, que se acha entendido por ler best sellers de literatura e por andar com gente culta e metida a inteligente. Contudo, quando se depara com uma realidade diferente da qual está acostumado, se perde por completo, sem entender absolutamente nada.

Ao nomeá-lo, Dylan incitou uma série de especulações sobre o real senhor Jones. Há quem o classifique como Brian Jones, dos Stones; há quem ache que foi uma menção ao escritor negro e militante Le Roi Jones; ou mesmo que há um contexto homossexual. Bob Dylan desvendou o mistério 12 anos depois, em um show de 1978, quando afirmou que escreveu a canção para “um repórter que trabalhava no Village Voice em 1963” (talvez Jeffrey Jones, que se sentiu até orgulhoso pelo bullying dylanesco). Em 1986, Dylan deu ainda mais pistas sobre sua motivação:

“Esta é uma canção que eu escrevi em resposta às pessoas que fazem perguntas todo o tempo… Eu imagino que a vida de uma pessoa fala por si mesmo, certo? Então de vez em quando você tem que fazer este tipo de coisa – colocar alguém no seu devido lugar… Esta é minha responsta para algo que aconteceu na Inglaterra, eu acho que foi 1963 ou 1964…” – Bob Dylan

Assim como o freakshow que Mr. Jones se depara, sua identidade é uma construção complexa, como uma colcha de retalhos. Sua fonte primária pode ter sido o tal repórter, mas acho que o próprio Dylan percebeu como o perfil se adequaria a inúmeros outros jornalistas e curiosos de algo que estava acontecendo e não sabiam do que se tratava. As analogias e metáforas de Dylan criam uma ambiência rica para exemplificar como “entendedores entenderão”. A escolha do sobrenome pode ter nascido de uma pessoa real, mas também é uma opção comum (como Silva aqui no Brasil). Um exemplo está na clássica entrevista de Bob a Horace Judson, da revista Time, em que o músico quer exemplificar um homem comum e diz “C.W. Jones”.

“Ballad of a Thin Man” deve ser entendida não só como um produto dentro de um contexto – quando Dylan deu cérebro ao rock e bagunçou toda uma forma pseudo-jornalística de se abordar o pop -, mas também expandir a reflexão para as relações humanas. Oliver Trager sugere “O Processo”, mas há mais Kafka em “Thin Man”. Tal qual em “A Metamorfose”, Bob Dylan questiona as relações humanas, as intenções reais dos interlocutores. Não há respeito, não há boas intenções. É o absurdo do Homem sendo o lobo do Homem.

Here’s Your Throat Back: Forma

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Depois de alguns dias de descanso, Bob Dylan e sua banda de apoio (Mike Bloomfiled – guitarra; Paul Griffin – Rhodes; Al Kooper – órgão; Bobby Gregg – bateria; Harvey Brooks – baixo) voltaram para o estúdio A da Columbia no dia 2 de agosto, segunda-feira, para uma sessão produtiva e penúltima ida ao estúdio do que se tornaria Highway 61 Revisited (a próxima sessão seria exclusiva para “Desolation Row). “Ballad of a Thin Man” é última a ser gravada no dia (por volta das duas da manhã), a primeira música do álbum a começar com um piano – que muitos não sabiam que era o instrumento inicial de Dylan -, e apenas dois takes para chegar a versão final. É um começo soturno, que ganha ainda mais calafrios com a bateria arrastada e as ambiências sonoras do órgão. O clima é quebrado com um breve riso de Bob, que parece ilustrar o absurdo da canção.

Com exceção da Ponte, cada estrofe obedece o mesmo formato, com Dylan enfatizando a rima e a penúltima linha rimando com “Mr. Jones (a-a-a-b-b). Como disse Polizzotti, Bob já usou este tipo de estrutura de rimas em outras canções (“My Back Pages”, “Maggie’s Farm”, por exemplo). O formato mostra um esforço técnico, já que é preciso encontrar várias palavras para a mesma rima. O resultado é uma sensação de algo inevitável, como se tudo acabasse obrigatoriamente no mesmo lugar.

Give Me Some Milk: Repercussão

“Thin Man” rendeu uma repercussão considerável. No primeiro show após o lançamento do disco, em Forest Hills (28 de agosto de 1965), Bob manteve a introdução da música até que as vaias contrárias ao trecho elétrico da apresentação diminuíssem para que ele pudesse entregar com exatidão sua mensagem. Outro ponto alto na mesma época é no famoso show de Manchester (17 de maio de 1966). É esta a canção que antecede um dos xingamentos mais famosos da história do rock: “Judas!”.

No belíssimo filme “I’m Not There”, ganhou boa atenção com uma espécia de clipe, com um jornalista Jones sendo arrastado por situações bizarras e uma Cate Blanchet como Bob Dylan.

Ao longo dos anos, as versões tiveram mudanças relativamente pequenas, Apesar disso, foi objeto de estudo para um artigo acadêmico em que se analisa a voz e entonação de Bob Dylan em cinco décadas da canção.

Em 2012, Bob Dylan passou a usar um piano no palco e ecos na canção. Tempos depois, usou o instrumento para entoar “Thin Man” – contudo e sem surpresas, a famosa linha no instrumento não foi tocada por Dylan.

https://www.youtube.com/watch?v=o7YIRDtIkt0

Até julho de 2015, a canção pouco saiu do repertório. Até as poucas mutações empregadas por Dylan mostram o quão respeitoso ele parece ser pela obra criada. E até hoje, alguma coisa acontece no mundo dylanesco e inúmeros senhores Jones insistem em fazer as perguntas erradas.

Ouça outras versões da canção: