Resenha: Fallen Angels (ou “Young at heart”)

Um ano após Shadows In The Night, Bob Dylan reafirma sua fase “crooner” e lança o sucessor Fallen Angels com o mesmo escopo, mas com diferenças na abordagem.

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Enquanto Shadows… é um disco mais denso e, trocadilho inevitável, sombrio, Fallen Angels se mostra, como diz a faixa de abertura, mais jovial. A melancolia de outrora agora dá lugar a um acalento à alma, celebrando o amor. Junte nisso uma intimidade maior com o formato escolhido para as releituras de standards já interpretados por Frank Sinatra e você tem um disco leve, solto e feliz.

Outra diferença entre seu antecessor é que Fallen Angels possui arranjo mais “jazzy”. O baterista George Receli esteve mais presente com sua vassourinha; Stu Kimball alterna entre guitarra e violão; e Donnie Herron e Charlie Sexton dividem boa parte do protagonismo instrumental, entre lap steel, mandolin e violino no primeiro e a guitarra suave e exata do segundo. (O baixo de Tony Garnier é belamente invisível, mostrando ainda mais seu talento como diretor musical, jogando para o time e sempre a favor da música, como defendido pelo seu técnico-mór).

Dylan e sua trupe soam mais íntimos às canções e aparentam estar mais preparados para se divertirem com elas.

Half a Love Never Appealed to Me

Os temas românticos são uma constante em Fallen Angels, levantando a indagação inevitável: estaria Bob Dylan apaixonado por alguém que só saberemos daqui bons anos (como ocorreu com o casamento com Carolyn Dennis décadas atrás)? Ou estaria o músico fazendo uma homenagem a seu amor desde a juventude de maneira metalinguística: ode à música, sua eterna musa inspiradora?

Ao celebrar o amor, Dylan também homenageia seu próprio percurso, pautado sempre na fidelidade e amor à música, fazendo o que acredita… all the way.

It Had To Be You

Apesar da seleção das canções e seus arranjos serem os pontos fortes do álbum, uma observação recorrente ao Dylan deve ser revisitada. Assim como nos anos 80, quando muito se criticou as tentativas frustradas de Bob de explorar os tons mais agudos da sua voz, Fallen Angels mostra que ele quer insistir no erro do passado. Ao entoar esses tons agudos, seu timbre soa forçado e quebradiço, enquanto que os timbres graves soam ideais para a atual voz de Bob.

Ainda assim, quando se consegue ultrapassar esta barreira, tem-se um cantor imerso na canção, com um objetivo maior além de apenas interpretá-la. Dylan quer se apropriar das melodias e seus desabafos líricos já tão desgastados por versões anteriores. E aí mora uma atitude muito respeitável e contínua em sua carreira: desafiar as próprias limitações e criar um ambiente em que o conformismo não é uma regra.

Trilhando: Fallen Angels

Young At Heart: a tônica do álbum. Dylan faz jus ao refrão, mesmo que olhando para um passado distante. Aqui, a questão não é ouvir um Bob Dylan nostálgico, mas um artista que ainda busca a reinvenção, aos 74 anos.

Maybe You’ll Be There: o belíssimo violino, possivelmente Donnie Herron, dialoga com a voz de Dylan, criando uma pintura sonora tristonha, mas com ares otimistas em relação ao amor.

Polka Dots and Moonbeams: introdução com mais de um minuto e meio de solos. É Dylan sendo Dylan e te fazendo rever o conceito de expectativa. Não espere sua voz, ela chegará no momento certo.

All The Way: é como se Dylan falasse sobre o próprio ímpeto necessário ao artista. E mais do que enfatizar a necessidade de ser fiel à arte, é aceitar que o amor é imprevisível e a única coisa a se fazer é vivê-lo até o fim.

Skylark: contemple a contemplação dylanesca, mesmo que alguns deslizes vocais. O violino parece ser de Stephane Grappelli e suas conversas sonoras. Nos segundos finais, um ruído te coloca no meio da sessão de gravação (assim como a respiração de Dylan, presente também em Shadows In The Night).

Nevertheless: o canto arrastado compensa a dicção e a afinação com uma interpretação sutil, mas significativa. Assim, porque não pensar que ele está falando sobre si? (“Maybe I’ll live a life of regret/ And maybe I’ll give much more than I get/ But nevertheless, I’m in love with you”).

All Or Nothing At All: a melhor música do disco, para mim. Contraditoriamente, Bob Dylan copia os arranjos e melodias de Sinatra, mas consegue criar uma nova interpretação, um novo humor. Bob parece transformar em um manifesto daquilo q faz há mais de 50 anos: amor eterno à música.

On a Little Street In Singapore: o ritmo em staccato criam a base para que Dylan voe com sua voz. É um vôo um pouco atrapalhado, mas interessante de se observar.

It Had To Be You: Dylan nos leva a um bar esfumaçado na década em que nasceu. Ele parece renegar seu passado de cantautor e forjar uma carreira como “intérprete invisível”. Não é preciso saber quem ou como é, basta aprecisar as notas que circulam pelo ar.

Melancholy Mood: a música com a melhor performance vocal de Bob. Ele parece confiante e íntimo da canção que interpreta. E se quiser mais metalinguagem, podemos pensar na eterna busca artística de Dylan (“Deep in the night/ I search for a trace/ Of a lingering kiss, a warm embrace”)

That Old Black Magic: o melhor arranjo do disco, sem dúvida. A bateria soa como um trem passeando pela paisagem sonora feito pelo restante. Aqui nada da errado, porque não há nada de errado em amar.

Come Rain or Come Shine: seja o que for, seja como for, eu vou te amar. É assim que Dylan finaliza Fallen Angels, como se dissesse: “goste ou não, take me as I am”.

CONCLUSÃO

Aos 74 anos, Bob Dylan nos mostra que trilhar novos caminhos e explorar novos meandros internos não é uma ousadia reservada aos jovens. Como entôou nos primeiros anos de carreira, aquele que não está ocupado nascendo, está ocupado morrendo. E Dylan, meus caros, está mais vivo do que nunca.

Contudo, esta viagem nostálgica de Dylan me impregna da mesma nostalgia, mas para um passado mais recente. Gosto desta “fase crooner”, mas sinto saudades do Bob de anos anteriores, bebendo mais do blues e rock ao invés de standards de jazz.

Se você pensa assim também, quem sabe o passado se repete. Lembre-se que Dylan já gravou quatro discos de covers em dois momentos distintos – anos 70 com Self Portrait e Dylan, e anos 90, com Good As I Been To You e World Gone Wrong. E ao tirar o pé da composição, Bob pareceu se reinventar – Planet Waves e o retorno da parceria com The Band no primeiro, Time Out Of Mind e a renovação da confiança no segundo.

Ou seja: será que teremos um novo Dylan daqui algum tempo? Goste ou não das escolhas de Bob, a certeza de surpresa é o que faz a viagem emocionante.

Aquecimento Bootleg Series Vol. 11: ouça agora 8 músicas

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Para preparar todos os fãs para o décimo primeiro volume da Bootleg Series, que cobre a fase conhecida como “The Basement Tapes”, a Columbia escolheu alguns sites para presenteá-los com músicas exclusivas.

Aqui estão os links para elas:

You Ain’t Goin’ No Where (Take 1)
[youtube]https://www.youtube.com/watch?v=40KqjBPj_SQ[/youtube]

 

Yea! Heavy and a Bottle of Bread (Take 1)

Tupelo (John Lee Hooker cover)

900 Miles from My Home

Ain’t No More Cane (Take 2)

Lo and Behold! (Take 1)

Dress It up, Better Have it All

Odds and Ends (Alternate version)

15 músicas inesquecíveis… que Dylan (quase) esqueceu!

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Ao longo dos mais de 50 anos de carreira, Bob Dylan compôs centenas de canções. Algumas estão presentes, em shows e discos, desde seu nascimento; outras, viram a luz da plateia apenas raras vezes; outras só sentiram o frio do ar-condicionado do estúdio.

Abaixo, quinze músicas fantásticas que Dylan deixou de lado – ou guardou durante um bom tempo.

– Abandoned Love

Antes de ser gravada para o álbum Desire – mas substituída por “Joey” e inserida em Biograph, de 1985 -, “Abandoned Love” foi apresentada ao vivo durante a participação de Dylan em um show de Ramblin’ Jack Elliott no dia 3 de julho de 1975 (provavelmente dias após sua composição).

A interpretação no palco supera muito a de estúdio. Bob parece imerso no ideal de amor que construiu, mas que agora quer abandonar. Inúmeras frases ficam na cabeça do ouvinte com a certeza de que seu sentido teve ou terá relevância em algum momento. Um exemplo? “I march in the parade of liberty/ But as long as I love you I’m not free/ How long must I suffer such abuse/ Won’t you let me see you smile before I cut you loose?”.

– Up To Me
12 estrofes em 6:19 minutos e a impressão de que se poderia ouví-la durante horas. “Up To Me” foi gravada durante as sessões acústicas de New York para o disco Blood On The Tracks. Sua melodia e abordagem lembram bastante “Shelter From The Storm” (o que talvez explique sua exclusão), mas a história é outra. Ao invés de ser convidado para um abrigo contra a tempestade, o eu-lírico descreve situações em que o destino lhe dá responsabilidade.

Ao final, uma conclusão impossível de ser interpretada como algo não biográfico: “And if we never meet again, baby, remember me/ How my lone guitar played sweet for you that old-time melody/ And the harmonica around my neck, I blew it for you, free/ No one else could play that tune/ You know it was up to me”.

– Almost Done

Apesar de bela e tocante, “Almost Done” faz jus ao nome e é uma obra inacabada. Bob Dylan a tocou em alguns ensaios em maio de 1984, mas infelizmente abandonou antes de finalizá-la. A letra é difícil de entender, principalmente porque algumas vezes ele apenas balbucia para guardar a melodia.

Mesmo incompleta, é daquelas que se pega cantarolando no meio da tarde.

– Nobody ‘Cept You

Sobra de Planet Waves, mas executada durante os primeiros shows da concorrida turnê de ‘74, “Nobody ‘Cept You” parece uma música sacra travestida de romântica (“There’s a hymn I used to hear/ In the churches all the time/ Make me feel so good inside/ So peaceful, so sublime/ And there’s nothing that reminds me of that/ Old familiar chime/ Except you”).

Seu registro em estúdio ainda é experimental, com Levon Helm parando de tocar antes do término, mas o resultado é uma música alegre e vibrante.

– I’ll Keep It With Mine

Essa não é uma música linear, reta e bem formatada. Supostamente feita para Nico, do Velvet Underground, (com quem Dylan, também supostamente, teve um caso), “I’ll Keep It With Mine” ficou em constante transformação durante 18 meses. Nesse registro, durante as gravações de Blonde On Blonde, o produtor Bob Johnston parece não entender de onde Dylan tirou a canção.

– Percy’s Song

Assumidamente influenciada por “The Wind and The Rain”, de Paul Clayton, “Percy’s Song” é cantada de maneira tão melancólica quanto seu enredo. O solos de gaita parecem entoar uma poesia ainda mais bela e tristonha. Como em uma sinfonia, o único som que é possível ouvir da plateia são tosses pontuais – dos poucos vencidos pela garganta seca, como se o corpo esquecesse de todos os sentidos para focar apenas na audição.

– Lay Down Your Weary Tune
Uma ode à natureza, ou uma tela panteísta que segundo Michael Gray é uma visão de mundo em que a natureza não é apenas uma manifestação de Deus, como também contendo Deus em todo seu aspecto. “Lay Down Your Weary Tune” pode ser considerada das primeiras músicas impressionistas que Dylan compôs, ao lado de outras como “Mr. Tambourine Man”.

A canção foi deixada de lado do álbum The Times They Are A-Changin’ para dar lugar a “Restless Farewell” e seu adeus ao passado.

– Let’s Keep It Between Us

Mais um dos ataques ácidos direcionados àqueles que se acham amigos. Ao piano, Bob dispara seu ódio para as especulações e fofocas (algo que ele sentiu na pele desde o começo). Então sugere: “vamos manter entre nós, querida”.

Um R&B cantando com vontade e sinceridade, mas apresentada apenas algumas vezes. Gravada inicialmente para o disco Shot Of Love, Dylan chegou a tocá-la durante a turnê de 1980.

– John Brown

Bob Dylan, então com 21 anos, já opinava contrário às guerras – seja contra Cuba, seja contra o Vietnã. “John Brown” é inspirada na tradicional inglesa “Mrs. McGrath”, mas atualizada para os EUA do século XX e as consequências do ufanismo acéfalo.

A canção conta a história do soldado John Brown e sua orgulhosa mãe, que diz a todos sobre a ida do filho à guerra. No reencontro, ela se depara com o rapaz destruído – fisica e mentalmente – pela guerra. O final, quase em suspenso, deixa claro: o orgulho pela medalha inexiste nas memórias de John.

Dylan lançou a música em 1963, sob o pseudônimo de Billy Boy Grunt, na revista Broadside. Após algumas apresentações, Bob só revisitaria em 1987 após sugestão de Jerry Garcia para a turnê com o Grateful Dead. A primeira aparição oficial seria no disco Unplugged, de 1995.

– Pretty Saro

A música não é de autoria de Dylan, mas a primeira vez que a ouvi (durante a divulgação de “Another Self Portrait”), não consegui entender porque Bob resolveu tirar uma das melhores interpretações que já fez. Sua voz, da época “crooner” e levemente empostada, traz uma doçura única à canção tradicional e sua narrativa amorosa.

Quase ironicamente, Bob canta: “If I was a poet/ And could write a fine hand/ I’d write my love a letter/ That she’d understand”. Como se não fosse um de seus grandes trunfos.

– I’m Not There

Um quadro em poesia. Uma fotografia em acordes. Um segundo descrito em 5:13 minutos. Para Dylan, as palavras soltas, sem um significado aparente para ele, é critério suficiente para deixar a canção de lado. Como disse Heylin, foram necessários 40 anos e um filme de 40 milhões de dólares para que “I’m Not There” saísse do porão.

É uma música inacabada, quase nos mesmos moldes de “O Castelo”, de Kafka. Aqui, porém, o prazer não é ver uma obra não finalizada, mas ouvir as palavras e o som metaforseando-se em uma canção. A imagem que temos, contudo, é de um ser deformado, com um potencial de ser quem ele quiser.

– Blind Willie McTell

A canção menos esquecida por Dylan – que escolheu tocá-la frequentemente nos últimos anos -, mas que quase ficou inédita ao público. Bob gravou-a para Infidels, mas resolveu tirar da seleção final, deixando o crítico músical Paul Williams fora de si. Ao questionar Dylan sobre o porquê tirar a melhor canção da safra, Bob apenas respondeu: “Calma, é apenas um disco. Eu já fiz vários deles”.

Por sorte, ela saiu do ostracismo no Bootleg Vol 1-3.

– All Over You

Uma divertida canção que mistura humor e paixão. Tão óbvio quanto um gato ter nove vidas, um milionário ter um milhão de dólares e Rei Saud possuir quatrocentas mulheres, eu faria tudo por você. Amor e humor caminhando pela estrada da conquista.

– Love is Just a Four-Letter Word

Tão esquecida por Dylan que ele nem se deu o trabalho de terminá-la ou mesmo gravá-la. O registro ficou por conta de Joan Baez, que insistiu para que Bob a terminasse. No fim, como Oliver Trager descreve, “Love is Just a Four-Letter Word” é mais dos aforismos dylanescos.

– I Was Young When I Left Home
“Isso deve ser bom para alguém, esta música triste. Eu sei que é boa para alguém. Se não é para mim, é bom para alguém”, introduz Dylan. Este é o único registro da música (gravado em Minnesota em 22 de dezembro de 1961, após Bob gravar seu disco de estreia, mas antes do lançamento) e ele canta como se tivesse, no mínimo, o dobro da idade que tinha – apenas 20 anos. A canção ecoa “500 Miles” de Hedy West – que por sua vez utilizou como base a tradicional “900 Miles”.

Para quem se viu obrigado a sair de sua casa, de sua cidade e de abandonar o próprio nome para trilhar o caminho que lhe cabia, Dylan se mostra um exímio observador ao descrever a saudade de casa e das consequências tristes da despedida.

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E para você, alguma música inesquecível ficou de fora?