O melhor disco de Dylan (pt.3): Para a minha história

Esta é a última parte da trilogia “O melhor disco de Dylan” (Parte 1, Parte 2). Neste texto, falarei sobre o disco que mais tem influência sobre mim.

Tão ousando quanto eleger o disco mais importante para a história da música (ou para o próprio Dylan) é dizer qual é o seu álbum predileto. Neste caso, o contexto da gravação e até mesmo as músicas nem sempre são decisivas para a escolha.

E sobre minha decisão, nem eu sei quais são exatamente as razões que me fazem gostar tanto de John Wesley Harding. A única coisa que eu sei é que, sempre que deparo com qualquer música do álbum, eu preciso prestar atenção e tenho vontade de ouvir o disco inteiro. Isso acontece com outros (como nos acústicos Good As I Been To You e World Gone Wrong, por exemplo), mas há algo que me conecta a John Wesley Harding.

The Drifter’s Escape

Bob Dylan acabara de voltar de uma turnê pela Europa quando conseguiu alguns dias de férias no meio de 1966. Nesta época, uma nova turnê americana já estava agendada, uma emissora de televisão havia dado US$100 mil como adiantamento para um especial e a editora Macmillan cobrava o cantor pelo seu livro Tarantula, que já recebera até divulgação na mídia. Bob Dylan sofria pressões de todos os lados. A Hard Rain’s A-Gonna Fall.

Era 29 de julho de 1966 quando Bob Dylan dava uma volta com sua moto Triumph Tiger 100 de 500 cilindradas pela região de Woodstock. Sara Dylan o acompanhava de carro quando viu Bob perder o controle da moto e cair. Boatos indicavam que a vida de Dylan estava em risco.

A real gravidade do acidente permanece um mistério. A versão “oficial” é que Bob quebrou o pescoço e quase morreu. Porém, há quem diga que Dylan usou o acidente para fugir de todas as exigências que o pressiovam. Bob Dylan ficou uma semana no hospital e diz ter passado um mês de repouso em sua casa.

Com sua turnê cancelada, Dylan permaneceu em sua casa, em Woodstock, para descansar. Este hiato serviu principalmente para que Bob pudesse desempenhar seu papel de pai e marido, além de montar projetos. Um deles foi a exaustiva edição do documentário Eat The Document, sobre a recente turnê elétrica.

Bem mais despretensioso, Bob passou de junho a outubro de 1967 tocando quase diariamente com seu então grupo, recém-intitulado The Band. Dylan ia até a mansão em que a banda estava hospedada, a famosa Big Pink, e tocavam improvisos e canções tradicionais. Estes encontros foram registrados e se transformariam no disco “The Basement Tapes”, lançado em 1975.

If you cannot bring good news, then don’t bring any

Enquanto o mundo se admirava com a psicodelia, Bob Dylan permanecia recluso. Apesar desta época receber grandes lançamentos inovadores, como “Sgt. Peppers” dos Beatles, “Pet Sounds” dos Beach Boys e ver nascer o grupo Velvet Underground, Dylan parece ter sido mais influenciado pela péssima notícia que recebera.

No dia 3 de outubro, Woody Guthrie não resistiu às complicações de saúde por conta de sua doença de Huntington. Um dos maiores ídolos de Dylan, e razão de sua ida à New York, Guthrie deixava o mundo e isso provavelmente afetou drasticamente seu aprendiz.

He was never known to make a foolish move

“Eu não sabia como gravar do jeito que outras pessoas estavam gravando e eu não queria saber. Os Beatles tinham acabado de lançar Sgt. Pepper, que eu não gostei de maneira alguma… Eu pensei que era um álbum bem indulgente, apesar das canções serem realmente boas. Eu não achava que toda aquela produção era necessária” Bob Dylan

Duas semanas depois da morte de Woody, no dia 17 de outubro, Bob Dylan viajou para Nashville para gravar no Columbia Music Row Studios, mesmo local em que gravara seu disco anterior (Blonde on Blonde).

Dylan manteve o produtor Bob Johnston, mas dessa vez recrutou apenas dois músicos – Kenneth Buttrey (bateria) e Charlie McCoy (baixo) – para participar das três sessões de gravação (17/10, 6/11 e 21/11). Pete Drake (steel guitar) tocou apenas nas duas últimas faixas do álbum.

O início de John Wesley Harding já mostra o caminho que Dylan trilharia. Enquanto muitos experimentavam ruídos, ecos e artimanhas tecnológicas no estúdio, Bob iniciava seu disco apenas com violão. Em seguida, baixo, voz e bateria dão o tom. O retrato do jovem de “Blonde on Blonde” não é mais o mesmo.

Nothing is revealed

“Antes de compor John Wesley Harding, eu percebi algo sobre todas as canções mais antigas que eu escrevi. Eu descobri que quando eu utilizava palavras como ‘ele’, ‘isto’, ‘eles’ e falava sobre outras pessoas, eu estava na verdade falando em ninguém a não ser eu. Fui para John Wesley Harding com este conhecimento na minha mente.” Bob Dylan.

Em John Wesley Harding, Bob Dylan aparenta uma sensatez até então inédita. No lugar do ansioso e curioso artista verborrágico, entra um verdadeiro poeta observador, que faz um apanhado de sua(s) vida(s) através de frases precisas.

Todas as palavras usadas em John Wesley Harding, das letras à nota da contracapa (passando pela inclusão da letra “g” no nome do lendário fora-da-lei), possuem um propósito. Mas nada é revelado. Tudo está codificado.

Bob utiliza com consciência toda a linguagem que desenvolveu de maneira intuitiva nos cinco anos anteriores. Com parábolas e alegorias, ele faz um balanço sobre sua vida. Ironicamente, a “voz da geração” virou as costas para todos os acontecimentos políticos da época para viver com plenitude o papel de homem de família.

Muitos que visitaram Dylan disseram que ele tinha em um lugar de fácil leitura a Bíblia – acompanhada de um livro com letras do cantor Hank Williams.

I Pity The Poor Immigrant

A capa de John Wesley Harding possui uma foto bucólica (uma polaroide de John Berg) de um Dylan meio barbado e sorridente. Em sua companhia, o carpinteiro Charlie Joy e dois integrantes da trupe Bauls of Bengal (que estavam hospedados na casa de Albert Grossman).

(Há um rumor de que é possível ver membros dos Beatles e do cantor Donovan escondidos na árvore. Eu possuo o vinil originial e nunca encontrei qualquer vestígio do FabFour ou do “Dylan britânico”).

Outro ponto importante é o texto na contracapa. Escrito por Bob Dylan, a nota narra a história de três reis que percebem que “a chave é Frank”. Frank é acompanhado de Terry Shute e Vera.

Para James Dunlap (em um ótimo artigo da revista Isis #120), Frank representa um “novo” Dylan e sua vontade de libertação, deixando para trás e junto com o acidente o artista inconsequente. Terry Shute seria Albert Grossman, com quem Bob estava tendo sérias divergências, e Vera, obviamente, Sara. Os três reis representariam a indústria fonográfica (possivelmente três gravadores que queriam Bob Dylan na época).

Trilhando – John Wesley Harding

John Wesley Harding – Em entrevista para Jann Wenner para a Rolling Stone de 1969, Bob Dylan afirmou que a escolha do fora-da-lei foi por uma mera questão de rítmo. Michael Gray acha que o uso de um fora-da-lei serve para incluir o próprio Dylan nesta categoria. Além disso, há ecos das canções de Woody Guthrie, que costumava escrever sobre ladrões e andarilhos.

As I Went Out One Morning – Coincidência ou não, Tom Paine era o nome do prêmio que Bob Dylan recebeu em 1963. Na ocasião, Dylan fez um discurso polêmico, incluindo-se como uma pessoa que via em si parte de Lee Oswald – assassino de John Kennedy. Dunlap interpreta a donzela da música como sendo Joan Baez “forçando” Dylan a entrar nos movimentos políticos. No fim, o próprio Tom Paine pede desculpas.

I Dreamed I Saw St. Augustine – O autor de “Confissões” é o foco da letra, mas para entendê-la melhor é preciso ver as referências da primeira frase. Ela remete à música “Joe Hill”, de 1936, e que Woody tomou como base para compor seu “Tom Joad”. É interessante ouvir a gaita tendo um papel quase de protagonista na instrumentação.

All Along the Watchtower – Na época do lançamento do disco, Bob exigiu que não se fizesse muita publicidade para evitar atrair a atenção. Porém, a versão desta canção por Jimi Hendrix no final de 68 daria uma bela visibilidade para o álbum. A música é cheia de referências bíblicas e Paul Williams acertou em cheio ao afirmar que ela começa no meio da narrativa. Assim, tudo se inicia na última estrofe.

The Ballad of Frankie Lee and Judas Priest – Uma das minhas favoritas. A canção, que a banda Judas Priest tomou como base para se batizar, lembra as fábulas de Esopo. Dunlap a vê como a alegoria da relação entre Dylan e seu empresário, Grossman. Após dar o dinheiro que Frankie Lee precisava, Judas Priest o convence a ir a um bordel, onde morre de cansaço. Vale lembrar que Al Grossman era famoso por fazer ótimas festas em sua casa em Bearsville (próximo a Woodstock) e providenciar as melhores drogas e mulheres.

Drifter’s Escape – Foi a primeira canção a ser gravada. Ela conta a história a fuga de um vagabundo durante um julgamento. O juiz soa como um ser divino, mas trata com descaso a súplica do réu. O nome certamente é uma referência ao heterônimo “Luke the Drifter”, criado por Hank Williams para entoar canções mais sombrias.

Dear Landlord – Para mim, “Dear Landlord” é o desabafo de Dylan e sua relação com seu Senhor Feudal (aka Al Grossman). Ele pede que não dê preço em sua alma. No fim, quase em tom de ameaça, sugere que não seja subestimado para não subestimar seu interlocutor.

I Am a Lonesome Hobo – Seria a frase “Where another man’s life might begin/ That’s exactly where mine ends” a oficialização do “velho” Dylan da fase pré-acidente? Para mim, a canção exala independência e é a autonomia de Dylan como artista, seja para seu empresário, sua gravadora e até mesmo para as exigências de seus fãs (que o vaiaram quando escolhera a guitarra como companheira).

I Pity the Poor Immigrant – Com melodia baseada em “Tramps and Hawkers”, essa melancólica canção pode ser interpretada como um conselho de Dylan para consigo mesmo. Hinton indica que aqui há referências bíblicas presentes em capítulo 26 de Levítico.

The Wicked Messenger – Canção com arranjo mais elaborado do disco. Talvez o “Wicked Messenger” (algo como mensageiro perverso) seja o “velho” Dylan e seu uso da linguagem poética. É uma letra meio confusa e há quem veja referências bíblicas.

Down Along the Cove – As duas últimas faixas de John Wesley Harding destoam do restante do álbum. “Down Along the Cove” é suingada e romanticamente feliz. Talvez faça sentido ao ouvir a frase da canção anterior: “If ye cannot bring good news, then don’t bring any”.

I’ll Be Your Baby Tonight – Fiel à base country, a canção é uma prévia do caminho que Dylan escolheria para Nashville Skyline. Uma música boba, romântica, mas bela. O pedal steel dá um ótimo toque com suas melodias.

Concluindo: por que é o melhor disco de Dylan para minha história?

As imagens criadas por Bob Dylan, tão ricas quanto sutis, prendem a minha atenção. É impossível não curtir frases como “I offered her my hand/ She took me by the arm”, “There are many here among us who feel that life is but a joke”, “It’s not a house . . . it’s a home”, “Dear landlord/ Please don’t put a price on my soul/ My burden is heavy/ My dreams are beyond control” e tantas outras mais.

Além do conteúdo, a forma é uma arte por si só. Em um contexto todo psicodélico da música, Bob Dylan prefere ser proporcional ao seu mundo e escolhe algo minimalista, direto e acústico. Ele vive uma fase intimista e completamente familiar, que influencia sua música. Para mim, é uma das melhores fases de Bob Dylan, com a melhor relação “homem/poeta”.

O melhor disco de Dylan (pt. 2): Para a história de Dylan

Esta é a segunda parte da minissérie “O melhor disco de Dylan”. Neste post falarei sobre o melhor disco de Dylan para sua própria história. Como já disse, o rótulo de “melhor disco” é bem relativo, mas quis montar um breve panorama dylanesco a partir desses três exemplos. Veja a primeira parte aqui.

Depois de uma estadia em família no ambiente bucólico de Woodstock por cerca de 2 anos e meio – desde o fatídico acidente de moto, em 1966 -, Bob Dylan resolveu, no final de 1969, voltar a morar em New York, mais precisamente no número 94 da MacDougal Street, no coração de Greenwich Village.

You tamed the lion in my cage but it just wasn’t enough to change my heart

Talvez como consequência de sua volta ao mundo cosmopolita, ou devido à decisão de comprar e reformar completamente uma mansão em Point Dume (Malibu – Califórnia), Bob Dylan resolveu voltar a excursionar no início de 1974 com The Band, com a qual acabara de gravar o álbum Planet Waves.

O resultado da turnê – que obteve uma procura recorde de mais de 5 milhões de pessoas (cerca de 4% da população americana) para os cerca de 600 mil ingressos vendidos – foi mais do que seu registro no disco Before the Flood. Dylan retomou gosto pela vida boêmia, que resultou na volta do consumo, no mínimo, de álcool e cigarros, além das escapadas extraconjugais.

Felt an emptiness inside to which he just could not relate

Aliado ao retorno da tríade “sexo, drogas & rock’n’roll”, outro fator diretamente ligado ao nascimento de Blood on the Tracks foi o curso de artes que Dylan fez a partir de abril de 1974 com o imigrante russo Norman Raeben no Carnegie Hall.

Mais do que ensinar a pintar, Raeben buscava exercitar em seus alunos uma nova forma de olhar. A influência do professor no seu púpilo se deu principalmente de duas maneiras. Dylan explica que “ele colocou minha mente, minha mão e meu olho em um caminho que me permitiu fazer conscientemente algo que eu sentia inconscientemente”. Raeben também trouxe a Bob um outro entendimento de narrativa: ela não precisava ser vista como algo linear, mas poderia misturar passado, futuro e presente para criar um foco mais rico e unificado.

Bob tomou conhecimento de Norman Raeben através de amigos de sua esposa, Sara Dylan. Em 1978, ele deu alguns detalhes sobre como ficou sabendo dele:

“Eles estavam conversando sobre verdade, amor, beleza e todas essas palavras que eu ouvi durante anos, e eles as tinham todas definidas. Eu não conseguia acreditar… Eu perguntei ‘Onde vocês conseguiram todas essas definições?’ e eles me falaram deste professor.

[…] Nem preciso dizer que isto me mudou. Eu voltei para casa depois e minha mulher nunca mais me entendeu, desde então. Foi nesta época que meu casamento começou a acabar.”

Relationships have all been bad, mine’ve been like Verlaine’s and Rimbaud

Bob conheceu Sara Lownds em 1964, através da esposa de seu empresário Albert, Sally Grossman. Sara, que já fora coelhinha da Playboy, era casada com o fotógrafo Hans Lownds na época. Bob e Sara se casariam secretamente (até dos amigos e da então “namorada” Joan Baez) em 22 novembro de 1966.

As referências a Sara que Dylan fazia eram sempre de alta devoção, inclusive inspirando-o em canções como “Sad-Eyed Lady of the Lowlands”, “Love Minus Zero/No Limit” e “Sara”.

Em Blood on the Tracks, independentemente de qual seja a temática da música, é possível ver no álbum inteiro o registro de um homem perturbado. Bob vê a instituição que mais valorizava, seu próprio casamento, ruir e não sabe qual caminho tomar.

Depois de experimentar a felicidade plena e expressando-a principalmente no disco New Morning, os esforços de Dylan para salvar seu casamento começam em Planet Waves. Neste disco de 74 já é possível ouvir o desespero, que trazia junto até uma aceitável contradição, e que alcançaria seu ápice em Blood on the Tracks e ecoaria também em Desire.

Sara e Bob se divorciaram em julho de 1977.

Like it was written in my soul from me to you

Depois da turnê de 1974 e do aprendizado com Raeben, Bob viajou com seus filhos Jesse (na época com oito anos) e Anna (sete anos) até a região de Crow River, próxima a Minneapolis, em uma fazenda comprada em parceria com o irmão David (figura que importantíssima na história de Blood on the Tracks, como veremos). Ao reviver a vida no campo, porém, Dylan não revisitou integralmente a vida familiar. No lugar de Sara, levou Ellen Bernstein, executiva de 24 anos da Columbia, que conhecera durante a recente turnê com The Band.

Tão absurdo quanto viajar com seus filhos e sua amante para o campo, Bob Dylan compôs boa parte das suas confissões amorosas (que eram, em sua maioria, direcionadas e estimuladas pelo seu casamento em crise) e mostrava-as para Ellen.

“Ele compunha no começo da manhã e meio que concretizava por volta do meio-dia, descia e eventualmente, durante o dia, compartilhava o que ele escrevia. Estava no seu caderno, e ele as tocava e perguntava para mim o que eu achava, e estava sempre diferente. […] Ele mudava, mudava, mudava. Você definitivamente tinha a noção de uma mente que nunca parava”. – Ellen Bernstein

I replay the past

Com as músicas aparentemente prontas e um novo contrato com a Columbia concretizado (Dylan lançou Planet Waves e Before the Flood pela Asylum Records), Bob resolveu gravar no mesmo estúdio que registrou seus primeiros discos, o A&R – antes chamado de Studio A da Columbia. Phil Ramone foi chamado para produzir as sessões de Blood on the Tracks, que tiveram início em 16 de setembro de 1974.

Na primeira sessão, Phil chamou para participar das gravações o músico Eric Weissberg e seu grupo, Deliverance, para acompanhar Dylan. Deste primeiro dia, apenas “Meet in the Morning” iria para o disco. Nas sessões seguintes, Bob pediu apenas que o baixista Tony Brown e o organista Paul Griffin (que tocara na gravação de Highway 61 Revisited) participassem.

Com a data de lançamento marcada para o começo de janeiro, os registros ocorridos em New York seriam a versão final do disco. Porém, durante as festas de fim de ano, Bob Dylan foi até Minneapolis para ficar com sua família e mostrou o disco para seu irmão mais novo, David. Ao ouvi-lo, o caçula não gostou; achou as músicas muito parecidas e que sua venda seria baixa por conta da atmosfera monótona.

https://www.youtube.com/watch?v=ERzUPtc8W_c

David, que era produtor de bandas locais e jingles, levou Bob até o Studio 80 e nos dias 27 e 30 de dezembro Dylan gravou com músicos convidados pelo irmão. Além de regravar 6 das 10 músicas de Blood on the Tracks, Bob reescreveu algumas. Entre as músicas com mais mudanças estão “If You See Her, Say Hello”, “Tangled Up in Blue” e principalmente “Idiot Wind”, cujas alterações deixaram a música significativamente menos pessoal.

Blood on the Tracks foi lançado no dia 20 de janeiro de 1975 e recebeu ótimas críticas. Muitos acharam que era o melhor trabalho de Dylan desde sua reclusão em Woodstock, e vários o destacaram, mesmo ainda no meio da década, como o melhor disco dos anos 70.

Trilhando – Blood on the Tracks

Tangled Up in Blue – Uma das canções que mais absorveu os ensinamentos de Norman Raeben. Dylan mistura os pronomes e o conceito de tempo é diluída. Sobre a música, Bob já afirmou: “demorei 10 anos para vivê-la e 2 anos para compô-la”.

Simple Twist of Fate – Clinton Heylin, que teve acesso ao caderno em que Dylan escreveu todas as canções do disco, diz que esta canção tinha o nome temporário de “Fourth Street Affair” (possível referência ao endereço que Bob viveu com Suze Rotolo nos anos 60). Assim, Heylin acha que, da mesma forma que o término do relacionamento com Suze inspirou o cantor a escrever uma ode a um antigo amor, em “Girl From the North Country” Sara poderia ter incitado-o a lembrar de sua relação com Rotolo.

You’re a Big Girl Now – A versão de New York é incrivelmente emotiva. Porém, Dylan preferiu a versão de Minneapolis para incluir no disco (com ele fazendo os floreios “flamencos” no violão). De qualquer forma, é impossível não se envolver com o sofrimento de Bob, principalmente nas frases finais: “I’m going out of my mind/ With a pain that stops and starts/ Like a corkscrew to my heart/ Ever since we’ve been apart”.

Idiot Wind – Para mim, é uma das canções mais viscerais de toda obra dylanesca (escrevi aqui um post sobre ela). Em “Idiot Wind”, é possível sentir todos os sentimentos de um término de relacionamento: o arrependimento, raiva, desprezo e, acima de tudo, dor. A versão de Minneapolis sofreu fortes mudanças na letra e interpretação, tornando-se bem menos autobiográfica. É Dylan quem toca o órgão da canção.

You’re Gonna Make Me Lonesome When You Go – Indícios (como as cidades citadas) indicam que a música é para Ellen Bernstein. Apesar de Dylan parecer ter investido neste relacionamento, Ellen nunca quis algo mais sério. A canção parece ser cantada por um homem feliz, mas há toques melancólicos, como a comparação com o relacionamento tumultuado de Rimbaud e Verlaine.

Meet Me in the Morning – Oliver Trager a vê como a melhor performance vocal de Dylan no disco. A participação de Buddy Cage no pedal steel foi marcada por uma atitude agressiva, com Bob sendo ríspido ao explicar a Cage como tocar. No fim, o músico percebeu que era apenas uma brincadeira de Dylan para forçá-lo a dar seu máximo.

Lily, Rosemary and the Jack of Hearts – Shelton a define como “uma das mais longas fábulas de Dylan, que se desenrola como um jogo de cartas”. São 15 estrofes que relatam, com a linguagem pós-Raeben, um triângulo amoroso seguido de morte. Na gravação, depois de Bob ensaiar por apenas dois ou três minutos, David deu a dica aos músicos: “Quando vocês pensarem que a canção acabou, ela não acaba. Apenas continuem tocando. É uma longa música”.

If You See Her, Say Hello – Para Michael Gray, é a reescrição de “Girl from the North Country”. A versão do disco é arrastada, sensível, mas menos intensa que a de New York. Impossível não sentir compaixão ao ouvir: “Either I’m too sensitive or else I’m gettin’ soft”.

Shelter from the Storm – Apenas três acordes são necessários para descrever o estado tempestuoso em que o narrador se encontra. Porém, a letra e a intepretação de Dylan vão além. Muito além: “I bargained for salvation and they gave me a lethal dose/ I offered up my innocence and got repaid with scorn”.

Buckets of Rain – Inspirada na melodia de “Bottle of Wine”, de Tom Paxton, Shelton que as imagens são “risos para não chorar” e define a música como “o vento idiota sopra uma chuva pesada na Rua da Desolação”.

Concluindo: por que é o melhor disco de Dylan para sua história?

“Eu sou um mistério apenas para aqueles que não sentiram as mesmas coisas que senti”.

“Muitas pessoas me disseram que gostaram deste álbum. É difícil para mim me relacionar com isso – quero dizer, as pessoas apreciando este tipo de sofrimento.”
Bob Dylan

Aliado ao contexto desesperador de Dylan, Blood on the Tracks também pode ser considerado o ápice da criação lírica de Dylan. Se é necessário responder a pergunta com apenas uma frase, a minha seria: porque nenhum álbum dele foi tão verdadeiro e confessional.

Em um artigo escrito em 1975 e intitulado “Um álbum de feridas”, Greil Marcus começa afirmando que Bob não estava brincando quando ele chamou seu novo disco de Blood on the Tracks, já que as canções está cobertas de sangue.

O disco é o registro de uma sangria verborrágica. Mesmo bem lapidada, soa transparente e úmido de lágrimas.

Top 10 – Posts dylanescos

Para comemorar os 10 meses de idade e a casa nova, uma retrospectiva através dos 10 posts que julguei interessante. Para não enlouquecer, deixei em ordem cronológica de publicação.

1 – Trovadorismo Dylanesco (ou visões sobre Medgar Evers) – A partir de uma comparação entre as abordagens de Phil Ochs e Bob Dylan para o mesmo tema, o post mostra como Dylan eternizou através da linguagem poética tanto sua música quanto um retrato da sociedade americana da década de 60.

2 – A Hard Rain’s A-Gonna Fall (ou a descrição do medo e a discrição do terror) – Uma análise e contextualização de uma das canções mais ricas e emblemáticas de Dylan. Na época eu estava lendo a biografia escrita pelo Anthony Scaduto, que recomendo bastante.

3 – Ladies and gentlemen please welcome… – Relendo hoje, eu mudaria a “explicação” que utiliza Tom Zé como embasamento. Porém, ainda acho curioso saber a fonte da estranha introdução que Bob Dylan usa até hoje em seus shows.

4 – Dois melodramas em uma melodia – Além de dividirem a mesma melodia, Boots of spanish leather e Girl from north country bebem da mesma fonte lírica. Porém, cada canção empresou uma característica da letra original.

5 – Luz na iminente escuridão – Not dark yet é uma das minhas canções favoritas de Dylan. E ela só mostra o quanto Bob não é um artista datado, que se refere apenas aos anos 60. Muitas das suas últimas músicas mostram um compositor tão bom quanto antes. Mas agora ele tem a experiência a seu favor.

6 – Dueto inesperado – O registro deste dueto é imensurável. Mas como eu queria estar lá para ver Swiss Liz cantando junto com um Bob Dylan chaplinesco, enquanto o segurança não sabe o que fazer. Tudo isso com a platéia respondendo de maneira catártica.

7 – It ain’t me, babe – A recusa de Dylan – Uma abordagem menos óbvia sobre uma canção que aparentemente é “anti-mocinho”, mas que pode receber uma nova interpretação depois de levar em consideração afirmações e documentos de Bob.

8 – Os tolos e suas regras – Quando Bob Dylan se apresentou pela primeira vez na China, no começo do ano, muitas pessoas acharam que era obrigação um posicionamento em relação à política chinesa e à prisão de Weiwei. E Dylan se manteve fiel a si mesmo.

9 – No Direction Home, de Robert Shelton – Apesar de conter erros graves de revisão, o lançamento no Brasil desta biografia é um marco pois se trata de um livro essencial na biblioteca dylanesca e por ser basicamente a segunda biografia lançada em português sobre Dylan.

10 – Masters of War (ou Dylan sabor cítrico) – Esta é uma das canções mais agressivas e diretas de Bob. Quase não se vê poesia, apenas questionamentos revoltados em relação a uma problemática que se estende até os dias de hoje, quase 50 anos depois.

Bônus!

A origem do Farm Aid (ou Pedido de Dylan é uma ordem) – Um fato que soa hilário, mas que mostra o potencial profético que Dylan sempre teve. Mesmo que através de um comentário polêmico e desnecessário no contexto.

A relação esfumaçada entre Dylan e os Beatles – Tentei um tom que me arrependo, mas este encontro foi tão histórico que preciso destacá-lo. Imaginar o que seria dos Beatles sem a maconha é repensar praticamente toda a história dos anos 70 e a psicodelia.

O Folk Rock (ou Cavalo de Tróia em Newport) – Bob Dylan não tinha noção tanto da polêmica quanto do marco que seria sua apresentação elétrica no Newport Folk Festival. Enquanto muitos o rotularam como porta-voz, ele queria apenas botar pra fora os sons que tinha na cabeça.