São Paulo, 21 de abril de 2012. Estava próximo das 22h quando, ainda com as luzes acesas, uma guitarra começou a tocar riffs de blues. Minutos antes, alguns roadies haviam subido ao palco para testar instrumentos e fazer os ajustes finais. Os fraseados continuam, soando agora como aquecimento. O Credicard Hall fica às escuras e segundos depois um bando com seis integrantes invade o palco. Sem aviso prév io, sem a abertura erudita ou a introdução com o resumo da carreira dylanesca. Bob Dylan está no palco e o show começa. Simples assim.
Ver Dylan ao vivo, e a poucos metros, é esquisito. Ele não se parece com aquele garoto bochechudo do início dos anos 60, tampouco o acelerado ou cristão dos anos 70. Ele é outra pessoa, uma somatória sutil de todas as anteriores, mas sem nunca olhar para trás. E sua música segue o mesmo caminho.
1) A canção de abertura se mantém a mesma de toda a turnê brasileirá até aqui: “Leopard-Skin Pill-Box Hat”. Bob Dyl an no órgão cantando sem novidades. É uma boa canção, mas ainda prefiro a impactante “Gonna Change My Way of Thinking”, que Dylan escolheu para abrir os shows do começo de 2011.
2) Bob direto pro centro do palco, com guitarra. O violão de Stu começa e tudo muda. “Don’t Think Twice, It’s Alright” é solta, despojada, malandra. Bob canta “it’s alright” sem amargura. Ele está sozinho nesta longa estrada e não pode contar para onde está indo. Para ninguém.
3) Agora que tomou a estrada, acelera fundo numa versão country nervosa de “Things Have Changed”. “No one in front of me and nothing behind”. Ele desafia a banda e a si próprio, sem transparecer qualquer dificuldade. O que antes era uma afronta, agora é uma fuga fora-da-lei.
4) Bob consegue fugir, então desacelera um pouco. “Tangled Up in Blue” é menos melancólica que a original e Dylan a canta como se tudo fosse inevitável. A caixa da bateria de George pontua toda a canção (seguida por toques sincronizados de Don no lapsteel). Dylan exigiria muito do baterista, mas dessa vez ele foi aprovado.
5) “Beyond Here Lies Nothin’” é agressiva, ácida e vingativa. É o manifesto dylanesco que impõe: “aqui quem manda sou eu!”. Bob na guitarra-solo é irônico: enquanto que na voz prefere alterar sempre a melodia, na guitarra ele procura um fraseado e quando o encontra não abre mão.
6) “To Make You Feel My Love”. Primeira vez que Bob toca nos shows de 2012. Ele ainda está a procura da melhor ma neira de expressá-la. Começa no centro do palco, mas logo vai para trás do teclado. Apesar de aparentar inacabada, a interpretação é bela e contagiante.
7) “Honest with Me” leva a mesma rapidez de “Things Have Changed”, mas a pegada country dá lugar a um blues rock nervoso. Bob Dylan canta e deixa a banda brincar com riffs e improvisos. Don e Charlie criam uma melodia que aparece entre as estrofes e é pontuada também por George. Se no show de BH ela passou despercebida, aqui ela amadureceu e ganha seu espaço.
8 ) Assim como “Make you feel my l ove”, “Every Grain of Sand” é tateada pelo cantor. Bob Dylan parece insatisfeito com alguma coisa na música. No meio da canção, ele pára e só observa o instrumental da banda. Parece querer achar algo novo na música, algum espaço vazio. A versão é boa e agradável, mas entendo a procura de Bob.
9) O ponto mais do que alto do show e quando a minha máxima dylanesca é exemplificada com primor: “The Leeve’s Gonna Break” acontece. Ela começa normalmente, sem novidades, mas o que seria de Dylan sem seu descontentamento e mudanças iminentes? Ele logo comanda uma revolução no meio da canção. Para mim, não há nada ensaiado. O que se vê são paradas absolutas – total silêncio – , com algumas “esfregadas” brincalhonas de mão no teclado. Bob Dylan descobre uma fissura na estrutura e encontra uma nova canção. Ouvi-la nunca mais será igual.
10) Aaah…, “A Hard Rain’s A-Gonna Fall”. Assim que começaram os primeiros acordes eu sabia que muita água iria rolar – dos meus olhos. Bob já disse que cada verso de “Hard Rain” poderia ser uma música. Quando a compôs, ele estava ansioso por que não sabia quanto tempo ele – e toda a América – teria de vida. Após ver que viveu muito mais do que poderia imaginar, resolve finalmente mostrar a nós cada uma dessas sub-canções. A última estrofe sempre é nova. Ele descreve o que fará após o temporal, mas cada dia tem uma idéia na cabeça. E todas são boas. Como um mágico, ele tira uma melodia da cartola e passeia com ela. Ele fala e pensa e respira a música. Vai até as montanhas. Ele, mais do que ninguém, só a canta quando realmente a conhece. É messiânico e não poderia ser de outra forma.
11) Bob Dylan quer mudar “Highway 61 Revisited”, mas sua banda não entende qual o caminho que ele quer seguir. Ele gesticula, balança a cabeça, olha para o baterista, tenta vários caminhos, mas o que se vê é uma versão simplificada, com mudanças de dinâmicas menos explícitas e impactantes que apresentações anteriores.
12) “Love Sick”, a canção que abre Time Out Of Mind, soa menos triste que a original. Assim como em “Make You Feel My Love”, do mesmo disco, Dylan começa no centro do palco, mas logo muda para o teclado, onde faz um arranjo simples e criativo. Ela está mais rápida e pontiaguda, como uma tristeza vingativa. Bob enxuga as lágrimas vindas da doença, deixa o amor de castigo e vai beber com suas entranhas.
13) “Thunder on the Mountain” ganha um leve tempero de swing no seu rock dos anos 50. É possível imaginar pessoas dançando e rodopiando, mulheres com saias e homens com um terno impecável. Mais uma vez Dylan observa a banda, deixando-a soar e improvisar livremente. A música ainda está em construção e é um prazer testemunhar isso.
14) A “Ballad of a Thin Man” dos dias de hoje é épica. Para mim, é como se a canção tivesse precisado de mais de 40 anos para encontrar sua versão final. A voz de Dylan, com o timbre cavernoso, casa perfeitamente com o clima carrancudo. O eco, usado desde o ano passado, pontua cada palavra rasgada e enfiada goela abaixo do tal Mr. Jones.
15) Sinceramente? Acho que nada superará a versão de “Like a Rolling Stone” de Belo Horizonte, com Bob Dylan presenteando o público com o refrão. Aqui, contudo, as circunstâncias são outras: a platéia está sentada e os ingressos são bem mais caros. Ainda assim foi um momento memóravel.
16) Depois de Bob apresentar a banda e tecer comentários sobre os integrantes, Charlie Sexton dá a deixa para “All Along The Watchtower”. Ela soa aberta e livre, como se realmente estivéssemos em cima da torre de vigia, observando tudo. Agora, a movimentação de Dylan se inverte: ele sai do teclado para ir até o centro do palco e sugerir um novo fraseado. Bob en tão volta para as teclas para o final da canção.
17) Eduardo Suplicy encontrou Dylan em Brasília, deu a ele seu livro e pediu que tocasse “Blowin’ in the Wind”. Coincidência ou não Bob tirou “Rainy Day Woman” para incluir uma versão valseada de “Blowin'”. O que antes já foi um “hino”, agora se torna uma canção romântica, uma balada talvez. O público se amontoa na frente do palco e aquela história de “proibido filmar” vai para para o vento. Inúmeras pessoas se aglomeram na frente, de pé, e miram suas câmeras e celulares para o dono da noite. Ele, como de costume, não dá a mínima.
E assim, Bob Dylan termina a primeira noite paulistana. Em alguns momentos, presenciamos um ensaio aberto de Dylan e sua trupe. Em outros, a obra acontecendo e tomando vida própria. Para qualquer fã dylanesco, as duas opções são inesquecíveis.
Cada palavra lida aqui faz ressoar cada um daqueles tão esperados minutos do espetáculo que presenciamos ontem. A emoção que eu senti em cada um deles há de voltar em revivals de tempos em tempos e me fazer delirar com essa lenda presenciada, ali, ao vivo, a cinco metros. A todo instante, eu tentava encontrar naquela figura aquele menino que fazia tec tec na máquina de datilografia enquanto a joan cantava percy’s song. Mas então o que eu via era uma face repleta de sorrisos velhacos, daqueles que sabem que são legendários, daqueles que sabem o que fazem e que sabem que arrasam. Robert sempre soube mas acho que só agora se permite rir marotamente disso tudo. Foi lindo, foi incrível, foi Dylan.
Grande texto Pedro.Perfeito em sua descrição, para ler e reler sempre.
Eu estava lá,e, me permita compartilhar algumas análises.
Acho que Bob,nos transmite a possibilidade da energia musical pura e o fascínio atrai a mistificação.
Nosso Dylan,o mestre da astúcia,nos leva ao elemento de ferocidade,e a pergunta é:como ele tem a coragem de castigar,punir e humilhar sua platéia e,ainda assim ser endeusado??Ser mitificado??
*THE GREATEST SONGWRITER OF THEM ALL,e terça,ele estará em casa,14 anos depois……WELCOME HOME BOB!!
Valeu, André!
Até eu estou na expectativa do show do Dylan em PoA… Será que superará o de BH?
Abração!
Cara é como foi dito no Post, pelo menos em Like a Rolling Stone nada vai superar…
Soltar a plenos pulmões:
How does it feel
How does it feel
To be on your own
With no direction home
Like a complete unknown
Like a rolling stone?
Ainda com Dylan deixando a galera cantar como se estivesse pensando: Hei! esse pessol curte mesmo minha música, vamos ver do que eles são capazes.
Acho que conseguimos mostrar para ele.
LINDO ,MARAVILHOSO ,E EMOCIONANTE…mas NÃO SUPEROU BH em nada…fica pra próxima!