Resenha: Rough and Rowdy Ways (ou as multidões dylanescas)

Lançado nesta sexta-feira, 19 de junho, “Rough and Rowdy Ways” é a certeza de que Bob Dylan ainda tem muito a fazer – e nos surpreender. As 10 faixas do disco formam um quadro belo, vasto, vivo e preciso da arte dylanesca de alcançar a essência da canção.

Nos oito anos que separaram Rough and Rowdy Ways e Tempest, Bob Dylan esteve longe do descanso. Além de sua turnê interminável, lançou três discos, sendo um deles triplo, com canções clássicas do songbook americano. No palco e no estúdio, passou a flertar com um canto mais calmo, menos sujo – as notas se alongavam num sussurro acolhedor enquanto os músicos formavam uma névoa harmônica que as sustentavam.

Em Rough And Rowdy Ways, as lições aprendidas somaram-se aos blues já tão presente para criar uma rica paisagem lírica. Já nas primeiras audições, duas palavras me vieram a mente: gratidão e diversão. Seja nas canções carinhosas e acolhedoras, seja nos grooves joviais cheios de improviso, Bob Dylan une a energia do aqui-e-agora com o intimismo da sabedoria.

Aborda temas diversos: o mundo greco-romano, sua musa-mor Arte e a tradição do folk e blues. Todos entremeadas ao longo do disco, em imagens, referências, odes, listas e costuradas com o toque dylanesco de referências aparentemente distintas. Escritores, bandas e personagens diversos dividem versos para criar um cenário quase absurdo, quase impossível, mas que se torna real através do amálgama narrativo típico de Dylan.

É impossível não se emocionar com as baladas introspectivas. “I Contain Multitudes”, “I’ve Made Up My Mind do Give Myself to You”, “Mother of Muses”, “Key West (Philosopher Pirate)” prendem sua atenção. Cada uma a sua maneira, criam um laço intenso, uma conexão espiritual. Não poucas vezes me peguei num estado aéreo, completamente imerso na névoa dylanesca.

Já “False Prophet”, “Goodbye Jimmy Reed” e “Crossing the Rubicon” te fazem sorrir de canto. É a hora de curtir em alto e bom som, se possível de pé, e só imaginar como serão suas inúmeras versões ao vivo. 

“My Own Version of You” e “Black Rider” complementam o disco, com narrativas vívidas. Também é o caso de “Murder Most Foul”, um épico que pode parecer cansativo e monótono, mas uma vez imerso no enredo, se torna respeitável e definitivo.

Para a gravação, Bob Dylan recrutou sua atual banda – Charlie Sexton (guitarra), Tony Garnier (baixo), Bob Britt (guitarra), Donnie Herron (guitarra steel, violino, acordeon), Matt Chamberlain (bateria) – além da participação de outros músicos, sem explicitar em quais faixas.

  • Fiona Apple (cantora e pianista, supostamente gravou o piano em “Murder Most Foul”)
  • Blake Mills (cantor e guitarrista)
  • Benmont Tench (pianista e membro fundador do Heartbrakers)
  • Alan Pasqua (pianista)
  • Tommy Rhodes (ainda sem registro de quem seja…)

Rough And Rowdy Ways com certeza figura entre os melhores discos do Bob Dylan. É belíssimo em sua plenitude. 

Trilhando Rough And Rowdy Ways

As primeiras impressões das músicas. (Podendo mudar a cada audição)

I Contain Multitudes: o poema de Walt Whitman é recontextualizado ao lado de uma pilha de referências, como Rolling Stones, Anne Frank, Indiana Jones e Edgar Allan Poe. O belíssimo arranjo evidencia os versos e soa como um reflexo reflexivo da recente viagem jazzística.

False Prophet: um blues arrastado e lamacento, criado por  Billy ”The Kid” Emerson nos anos 50 ganha uma nova letra. False Prophet é malandra, divertida e envolvente.

My Own Version of You:  Dylan encarna Mary Shelley e faz sua versão musical de Frankestein. Num arranjo caminhante, um andróide que mistura Al Pacino, Marlon Brando, Leon Russell e tantos outros, além de um conhecimento gigantesco.

I’ve Made up My Mind to Give Myself to You: Essa é de moer qualquer coração, com a certeza de verter lágrimas. Para mim, é uma ode ao artista que se entrega por completo à Arte, ao público, à estrada e a sua Musa. 

Black Rider: direcionada a um personagem homônimo de uma peça teatral de Burroughs, com trilha de Tom Waits. Soturna, misteriosa e com uma bela performance vocal de Bob Dylan.

Goodbye, Jimmy Reed: um blues que poderia ter vindo dos Rolling Stones, mas que ganha novos ares líricos quando adentra o universo dylanesco. O improviso dos instrumentos cria um ambiente boêmio, esfumaçado. Vai dar boas versões ao vivo.

Mother of Muses: Outra ode comovente à Arte, com referência a Mnemósine, mãe das nove musas, dentre elas Calíope, musa da poesia épica. E outra bela performance focal de Dylan, ecoando os aprendizados de “Stay With Me”, por exemplo.

Crossing the Rubicon: Soa como uma continuação de “Early Roman King”, do disco Together Through Life. É interessante notar essa junção entre a história antiga e a estrutura tradicional do blues. A frase básica de guitarra vai dar muito molho ao vivo.

Key West (Philosopher Pirate): Me lembrou “Not Dark Yet”, mas otimista. É como se fosse uma resposta do Dylan dos 79 anos ao Dylan de 56. Impossível não pensar na biografia de Bob ao ouvir, principalmente ao ouvir juntar Ginsberg, Corso, Kerouac, Jimmy Reed e Buddy Holly.

Murder Most Foul: um épico que talvez até por isso Dylan preferiu deixá-la só em um disco separado (tanto no CD quanto no vinil). Como disse, parece monótona, mas sua narrativa envolvente te capta a atenção.

12 thoughts on “Resenha: Rough and Rowdy Ways (ou as multidões dylanescas)

  1. Bela análise. Opinião rápida e rasteira sobre o disco:
    Cara, que obra!!
    Dylan fez como no fim dos anos 90: seguidos discos de covers para remexer o baú do cancioneiro de seu país, misturou reminiscências, influências, enquanto a imprensinha musical idiota e os ‘modernetes’ – todos uns imbecis -bradaram que ele estava acabado,deveria se aposentar, etc. E então ele brinca, zoa, ele os esmigalha com uma obra-prima.

  2. Pedro, pelo que se conhece do Dylan, podemos supor que ‘Thommy Rhodes’ seja uma pegadinha à la ‘Jack Frost’, não te parece?

    Grande abraço.

  3. Boa tarde.

    Faz uns 2 meses eu li uma entrevista do Bob Dylan no Estadão, Caderno 2, reprodução de uma entrevista que ele deu ao The New York Times.
    O repórter, não me lembro o nome dele, disse que sentiu o senhor Bob Dylan deprimido. Ambos, o repórter e o artista, estavam sentados num banco de praça em Nova York, assim estava escrito.
    A decepção do artista com o mundo de hoje, vírus, essas coisas todas, é bastante, pra lá de compreensível, mas também muito honesta e direta, sem rodeios, o que não deixa de ser um exemplo.
    79 anos, quase 80, é bastante tempo, não?
    Bob Dylan e a sua arte, a coisa mais importante, no dizer da sua primeira mulher, para ele, quer dizer, a arte. Compreendo, mas tenho a impressão, não sei bem por quê, que Bob Dylan sabe da limitação disso tudo, arte, inclusive da sua.
    Ele foi, na juventude, leitor de Rimbaud, então deve saber da limitação da arte, música, poesia, todo esse universo, mas cria, não tem saída.
    Mas o que mais me chamou a atenção, pra dizer a verdade, na entrevista, foi o que ele disse sobre os Eagles, aqueles da canção Hotel California. Disse que uma música deles, talvez, não me lembro o nome da música agora, fosse a melhor canção de todos os tempos. Acho que Bob Dylan foi bem benevolente em dizer isso, e embora eu não conheça a música, de antemão duvido disso, pois conheço o suficiente os Eagles para afirmar a minha opinião.
    Tudo bem, se ele acha… Mas eu posso achar também.
    Não ouvi esse disco novo de Bob Dylan, talvez nunca ouça, é mais provável, mas desejo todo o sucesso a ele, quer dizer, a Bob Dylan.
    Um abraço, Dylanesco.

  4. Bom dia.

    No Crônicas Volume 1, Bob Dylan encerra o livro assim, se não me falha a maldita memória: …de um mundo que não é governado por Deus nem pelo Diabo.
    Ué! Quem governa isto daqui, na visão dele?
    É assustador ler isso, e pensar nisso ainda mais.
    Eu só sei o seguinte: a minha fé (em algum deus), se não foi embora totalmente, está por um fio. Se a gente tem fé, o que a gente ganha com isso?
    E ainda nascer num país onde o povo deste país chega num momento e, pior castigo, tem que se defrontar (e mandar goela abaixo) com duas opções, a saber: Lula ou Bolsonaro. É deprimente, não é mesmo?
    É, diante das opções, acreditar em Deus até soa mal.

  5. Bom dia.

    Apareceu, em Minneapolis, um tal de Withaker na vida do Robert (ainda chamado assim), quando o Robert nem tinha barba ainda, com 19 anos.
    Bob Dylan disse, li isso não sei onde, que o sujeito o deixava nervoso, e cutucava o seu peito com o dedo indicador perguntando ao imberbe quem ele estava pensando que era, se ele já tinha ouvido falar em Jack Elliot e “outras feras”, em Woody Guthrie, etc…
    A resposta de Bob Dylan é o que eu sempre fiz na vida, inclusive antes de ler essa passagem num livro: eu estava sendo sincero, fazendo o que de melhor eu podia fazer, não estava querendo enganar ninguém. E não, ele nunca tinha ouvido falar em nenhum Jack Elliot, não.
    Aqui neste mundo é assim: alguém sempre pergunta se a gente já ouviu falar em alguém.
    Quando se cria, a gente não pode dar muita bola a isso, não, ou não dar bola nenhuma.
    Andar direito na vida, sempre, eis a minha alegria, e louvado seja Deus.
    Dylanesco, um abraço.

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