[Vídeo] Getting To Dylan – a retórica simbólica dylanesca

Os dois primeiros anos da segunda metade dos anos 1980 foram imprescindíveis para o Bob Dylan que conhecemos hoje. Se 1987 Bob Dylan se reencontraria consigo mesmo após pensar em abandonar sua carreira e se aposentar (tema que merece um post exclusivo), no ano anterior Bob deu uma amostra do seu pensamento e seu discurso como artista para seu público, através de uma entrevista que por si só já é um “happening” dylanesco.

Getting to Dylan (1986)

Durantes as filmagens de “Hearts of Fire”, filme tão oitentista quanto bizarro que Dylan participou, Bob aceitou colaborar em um documentário de 50 minutos feito pela BBC para a série Omnibus. Intitulado “Getting To Dylan”, além de imagens de making of, entrevistas com a equipe do filme e cenas da coletiva de imprensa, Christopher Sykes conseguiu entrar no trailer de Dylan, estacionado no subúrbio de Toronto (uma das locações do filme) e falar com Dylan por cerca de 25 minutos.

Na opinião de Clinton Heylin (em Behind the Shades), e com o aval de Paul Williams, “Getting to Dylan” é um retrato pós-conversão cristã de Bob que complementa os outros filmes sobre o músico – “Dont Look Back”, “Eat The Document” e “Renaldo & Clara”. Se os três anteriores confrontam e rodeiam o mito, “Getting To Dylan” parece envolver o homem, diz Heylin.

Só Deus sabe (de onde as músicas vêm)

A conversa tem ótimos momentos e Bob Dylan parece descontraído e disposto a fornecer informações, a sua maneira, para as questões levantadas (apesar de admitir que não daria nenhuma revelação). Quando questionado de onde suas músicas vêm, ele responde: “Eu não posso te falar porque eu não sou Deus, sabe? Só Deus sabe dessas coisas”. Depois, quando Sykes pergunta a razão dele escrevê-las, ele rebate: “Eu só escrevo porque ninguém disse que não é permitido escrevê-las”.

Apesar de respostas tão misteriosas quanto suas letras, há momentos mais esclarecedores. Ao falar da fama e de assumir seu grau de reconhecimento público, Bob Dylan reflete sobre as implicações práticas de ser famoso.

“Digamos que vocês esteja passando em um bar ou num pequeno hotel e você olha pela janela e vê todas as pessoas comendo, conversando e seguindo em frente. Você observa por fora da janela e você consegue ver que eles sendo bem verdadeiros com os outros, tão real quanto eles podem ser. Porque quando você entrar no espaço, está acabado! Você não os verá sendo verdadeiros mais.”

Momentos antes, Bob Dylan discorda de Sykes quando o entrevistador diz que suas letras contém “histórias”: “Eu não chamaria de histórias. Histórias são coisas que possuem começo, meio e fim. Minhas coisas são mais como pequenos momentos que acontecem no meio de grupos de pessoas de maneira bem rápida. Normalmente eu nem as perceberia”.

Somando as visões de Dylan sobre sua influência em um ambiente e o material bruto que serve de base para suas letras, cria-se um retrato perturbador ao artista: como observar as casualidades da vida se sua presença já altera toda a atmosfera?

Artista no trabalho

No terceiro volume da série “Performing Artist”, Paul Williams analisa a entrevista meticulosamente e interpreta o quadro que se forma ao longo do quarto de hora.

A entrevista é feita enquanto Bob Dylan rabisca um papel (que depois descobrimos ser parte do roteiro de Sykes) e olha atentamente para o entrevistador – que também faz as vezes de modelo vivo. A câmera foca o rosto de Dylan e é profundamente intrigante vê-lo olhar para Sykes (assim como imaginamos o pavor que deve ter sido para o entrevistador ser a presa do olhar de leão de de Bob).

Ao fim da entrevista, como um passe de mágica premeditado, Bob Dylan compara o resultado do seu desenho com a sua própria imagem estampada na capa de um livro de letras. Então, faz a pergunta: “Vê as similaridades aqui?”. Para Williams, a conclusão dylanesca é evidente: o retratista sempre acaba fazendo um auto-retrato.

What about rap?

Na última parte do documentário, Bob Dylan está em Ontario rodeado por criaças e alguns adultos. A cena começa com Bob conversando com uns garotos sobre o gosto musical deles. Depois de ouvir nas respostas apenas bandas de rock (Judas Priest, Ozzy e Aerosmith), Bob Dylan questiona: “e que tal rap?”.

(O que me fez lembrar de três curiosidades: a “invenção” do rap por Dylan, sua participação no disco de Kurtis Blow e a carreira nesse estilo do seu neto, Pablo Dylan).

Bob Dylan depois tira fotos com umas pessoas (e se empolga ao abraçar duas mulheres), dá autógrafos com a mão esquerda e se vai… provavelmente triste por ver mais uma vez a atmosfera alterada pela sua presença, mas minimamente satisfeito por mostrar na prática o fardo que é ser Bob Dylan.

Confira o documentário completo, incluindo outras entrevistas:

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