Resenha: Bob Dylan, ao vivo em Oakland (10/06/2022)

por Leca, que já escreveu sobre outro show em 2019

Bob Dylan subiu ao palco da segunda noite (de três) em Oakland às 20h08 e eu só sei disso porque estava sentada atrás da mesa de som. Meu celular (e o de todos os presentes) foi selado em uma bolsa de nylon na entrada do evento. Talvez justamente por isso o bardo estivesse de tão bom humor: não havia um celular à vista para tirar o seu sossego.

O mesmo não aconteceu em New York em novembro do ano passado, quando assisti a primeira parte da turnê “Rough and Rowdy Ways” no Beacon Theatre. Ali, vi VÁRIAS pessoas sendo retiradas do show por abusarem das fotos e vídeos em vez de simplesmente aproveitarem o show.

Em Oakland, mesmo sem a distração dos smartphones, teria sido fácil perder a entrada de Dylan no palco. Ele aparece sem alarde junto com a banda, senta ao piano e imediatamente começa a tocar. É um show eficiente, focado e por isso, excelente.

Senti que ele estava animado essa noite. E talvez fossem as luzes douradas do belíssimo Fox Theatre, mas fiquei com a impressão de que esse foi, talvez, o show mais erótico dele que já assisti. Vou tentar explicar: sua voz estava confiante o tempo todo e ele cantou com uma malícia e sarcasmo que me lembraram demais a versão dele de 66 que desafiava jornalistas a torto e a direito.

Acho que a plateia também estava um pouco excitada, porque foram todos à loucura quando ele cantou “The size of your cock will get you nowhere” durante Black Rider.

Outra coisa que melhorou de New York pra cá parece ser a saúde do músico. Na costa leste ele precisou se apoiar no piano para cantar em pé ao microfone, mas aqui na California ele parecia estar muito mais confortável e seguro de si. Quando finalmente saiu de trás do esconderijo que é o imenso piano para cantar Melancholy Mood, ele ganhou uma ovação em pé de vários minutos, o que pareceu tê-lo deixado um pouco tímido, mas que de maneira alguma interferiu na qualidade da performance, uma das melhores da noite.

Outro destaque foi Gotta Serve Somebody. Com um ritmo contagiante, a música colocou os americanos, sempre tão rígidos nos seus assentos pré-determinados, para dançarem. E nesse momento pensei que, para honrar a capa do mais recente álbum, esses shows tinham que ter acontecido em algum lugar com uma pista de dança pra mais gente poder se soltar. As músicas eram perfeitas para isso e a banda estava impecável a noite toda.

Em termos de interações com a estrela da noite, ganhamos vários “Thank You” e um “You’ve been a great crowd tonight”, o que me fez sorrir de orelha a orelha por baixo da máscara.

É fácil ver porque ele continua na estrada aos 81 anos. Ele se diverte e deixa a música o conduzir durante as quase duas horas do show que entrega.

Comecei a acompanhar Bob Dylan ao vivo um pouco tarde na vida, quando fui capaz de pagar pelos meus próprios ingressos. Tive a sorte de vê-lo no Brasil em 2012, em Palo Alto em 2019, em NY em 2021 e agora em Oakland em 2022 e o que posso dizer sobre essas experiências é: com uma carreira de mais de 60 anos, Bob Dylan CONTINUA evoluindo e melhorando.

Saí do show de hoje com a impressão de que foi melhor do que tudo que já vi dele até então. É por isso que enquanto ele estiver na estrada, faço questão de acompanhá-lo. Dylan ao vivo nunca desaponta.

Repertório (por Boblinks):

  1. Watching The River Flow
  2. Most Likely You Go Your Way (and I’ll Go Mine)
  3. I Contain Multitudes
  4. False Prophet
  5. When I Paint My Masterpiece
  6. Black Rider
  7. I’ll Be Your Baby Tonight
  8. My Own Version of You
  9. Crossing The Rubicon
  10. To Be Alone With You
  11. Key West (Philosopher Pirate)
  12. Gotta Serve Somebody
  13. I’ve Made Up My Mind To Give Myself To You
  14. Melancholy Mood
  15. Mother of Muses
  16. Goodbye Jimmy Reed
  17. Every Grain of Sand

Bob Dylan, 81 Anos

Oitenta e um anos é muito tempo. São décadas e décadas de experiência, de vivência, de conquistas, derrotas, ganhos, perdas. E oitenta e um anos na cabeça de um poeta deve ser ainda mais doido. Há um modo de ver, um modo de experienciar, que difere de outros mortais. Há uma busca por palavras para descrever, por analogias, metáforas, associações, reflexões que muitas vezes se sobrepõem a realidade para se criar um novo mundo.

Bob Dylan completa hoje oitenta e um anos. Desde que esse ciclo começou, muitas coisas aconteceram em sua órbita dylanesca.

Em julho de 2021 lançou Shadow Kingdom, um especial em vídeo com regravações de 13 canções clássicas da sua carreira. Como nada que lança é usual, seu formato foi minimamente controverso: gravou tudo em estúdio e encenou todas as canções em um cenário com fotografia noir. Estranhamente, recrutou músicos diferentes dos que gravou as canções e alguns são atores que claramente não tinham intimidade com o instrumento. Ainda assim é um belo especial, com versões novas, distantes até mesmo das suas releituras no palco.

Em setembro de 2021, a Columbia lançou o 16º volume da Bootleg Series, dessa vez abarcando a primeira metade dos anos 80. Apesar de possivelmente ter pouca ou nenhuma influência nesse projeto de arqueologia musical, essas escavadas ao passado trazem uma releitura de um novo Bob, muitas vezes com narrativas reescritas de sua história.

Em novembro de 2021, retomou sua turnê. 2020 não tocou por motivos óbvios, sendo o primeiro ano desde 1984 em que Bob não tocava em público sequer uma vez. Houve poucas mudanças no repertório, mas as canções de seu disco de 2020, Rough & Rowdy Ways, foram acrescentadas em quase sua totalidade. Bob Dylan trocou o piano de calda por um piano vertical, além de uma iluminação focada do chão para cima. Também fez mudanças estruturais em seus parceiros de palco, mudando dois guitarristas e o baterista. As canções mais recentes ganharam nova amplitude, mesmo frescas. Dylan e seu ímpeto imparável de mutação.

After 2-year concert hiatus, ever-surprising Bob Dylan returns to embrace  his 'Rough and Rowdy Ways' | Star Tribune

Em março de 2022, anunciou o lançamento do seu próximo livro – distante da expectativa de muitos para um segundo volume de suas Crônicas. Mas a ideia ainda assim é muito boa. “A filosofia da canção moderna” é um conjunto de textos do Bob Dylan refletindo sobre canções diversas que o inspiraram. O lançamento será em novembro.

Em 11 de maio de 2022 é inaugurado um dos maiores centros de pesquisa para um artista ainda vivo do mundo. Bob Dylan Center fica em Tulsa, Oklahoma, e comporta mais de 100 mil itens relacionado à vida e obra do artista. A partir desse acervo, criou-se um museu imersivo e multimídia para uma experiência no processo criativo de Bob Dylan a partir de um resgate de quase toda sua carreira.

Um especial em vídeo, um box, um livro, um museu e uma turnê de volta às estradas. Tudo isso em apenas um ano na vida de um octogenário incansável. Ainda há exposições de suas pinturas e desenhos, além de suas esculturas de ferro que formam portões e até vagões de trem.

Um artista multimídia, diverso, que se arrisca e que recusa ser parte do passado – apesar de dialogar com poetas de tempos longínquos. Bob Dylan busca a atemporalidade não apenas em sua arte, mas também em sua vida.

Aos 20 e poucos escreveu “Meu nome não diz nada, minha idade menos ainda” e cá estamos vendo não repetir o passado, mas o passado prevendo o futuro. Bob Dylan não é folk, rock ou o que seja. É além disso. E tampouco é um artista velho que colhe os frutos do passado. Bob Dylan é um eterno novato que ainda planta as sementes de uma arte única.

Parabéns, Bob!

Resenha: Bootleg Series 16 – Springtime in New York

O 16º volume da Bootleg Series coloca luz na primeira metade dos anos 1980, mostrando um Bob Dylan pós-fase cristã e sem as maquiagens sonoras oitentista dos lançamentos da época.

“Springtime In New York” é o título dado ao volume 16 dessa discografia paralela dylanesca. A versão Deluxe possui 57 faixas, distribuídas em 5 discos e totalizando 4 horas e 20 minutos. O período coberto vai desde ensaios em outubro de 1980 meses, antes de Shot of Love, até março de 1985, durante as gravações de Empire Burlesque. Ao contrário de volumes anteriores recentes, o box é uma seleção das sobras de estúdio e versões ao vivo – ao invés de um compilado mais completo, incluindo versões inacabadas, como já feito. 

Admito que minha má relação com a sonoridade dos anos 80 me fez não me aproximar tanto de Infidels e Empire Burlesque. Até por este motivo, “Springtime in New York” é ótimo pois traz inúmeras faixas dessa época despidas dos exageros na mixagem tão comuns em sua época.

Disco 1 – Ensaios em outubro de 1980

O primeiro disco traz registros de ensaios ocorridos no fim do ano 1980. Poucos meses antes de Dylan entrar em estúdio para gravar Shot Of Love, os ensaios mostram o músico utilizando as influências de som da fase cristã, mantendo o trio de backing vocals negras, e reaproximando de canções sem teor religioso.

Meus destaques são “Let’s Keep it Between Us”, logo depois gravada por Bonnie Raitt  e covers inusitadas: “We Just Disagree” (gravada por Dave Manson), “Sweet Caroline” (famosa na voz de Neil Diamond) e “Fever” (um clássico na voz de Elvis Presley).

É impossível não notar a alta qualidade da banda que o acompanhava, com ótimos arranjos. Bob Dylan também mostra estar com uma bela voz, com um timbre bem harmonioso junto das cantoras que o acompanhavam: Clydie King, Gwen Evans, Regina McCrary e Carolyn Dennis (que se tornaria sua esposa até a década de 90).

Disco 2 – Sobras de Shot of Love

Shot of Love é considerado o último disco cristão de Dylan. Talvez seja o último mais explícito, mas religiosidade, em especial o cristianismo, é um tema que o cantor aborda até em composições recentes, além de menções em entrevistas.

Os destaques ficam com um reggae repaginado em “Is it Worth It?”, a bela cover de “Cold, Cold Heart” e a incrível “Yes Sir, No Sir”, uma canção muito diferente do que imaginei que Dylan pudesse fazer (se é que podemos esperar algo…). Com seu riff e ambiente quase progressivo (mas mantendo um aleluia repetitivo para indicar os objetivos religiosos, é claro).

Disco 3 e 4 – Sobras de Infidels

Os dois próximos discos compilam sobras de estúdio de Infidels. Seu maior diferencial é apresentar não apenas gravações que não constam no disco, mas principalmente apresentá-las sem reverbs, delays e todos os efeitos de som tão característicos da década de 1980 – que não poupou nem Bob Dylan!

Ouvir as canções despidas dessa maquiagem excessiva deixam mais aparentes suas reais belezas. Uma letra contundente, uma interpretação sensível e belos arranjos. Em algumas canções, é possível ouvir uma voz sendo forçada a um tom alto demais – uma tendência que Dylan teria até o início dos anos 1990 – que talvez seja as grande referência para os imitadores de plantão.

Dentre os destaques, impossível não citar “Jokerman”, a incrível “Blind Willie McTell” – que como sabemos, bizarramente ficou de fora do disco e só foi resgatada anos depois. As duas versões de “Don’t Fall Apart on Me Tonight” são belíssimas, mostrando a habilidade de Dylan em mudar completamente o significado da canção a partir da mudança de tempo e interpretação. “Someone’s Got a Hold of My Heart” também merece menção. Se transformaria em “Tight Connection to My Heart”, mas nesse momento tem uma letra completamente diferente, com mais referências e ao meu ver bem superior à versão final.

E “I And I” não sofre tanta diferença com a versão final (tirando a mixagem), mas merece menção pela ótima história com Leonard Cohen.

Disco 5 – Versões ao vivo e sobras de Empire Burlesque

Não entendi bem a intenção em incluir apenas duas canções ao vivo e bem no começo – achei um pouco desconexo com o box. A primeira é “Enough Is Enough”, gravada em Slane Castle, e a segunda é uma das lendárias aparições de Dylan no programa Late Night com David Letterman.

Das sobras de Empire Burlesque, um disco que sofreu, na minha humilde opinião, muito com a mixagem oitentista, destaca-se a crua “Seeing the Real You at Last”, as duas versões de “When the Night Comes Falling From the Sky” e “Dark Eyes”, esta última por ser uma das melhores canções de Dylan.

“New Danville Girl” é uma epopéia de quase 12 minutos muito citada em livros diversos, principalmente pela repaginada que sofreu até chegar na versão final, intitulada “Brownsville Girl”.

Conclusão

Springtime In New York é uma compilação interessante que consegue mostrar que até em momentos poucos intrigantes Dylan consegue se diferenciar da multidão. Ouvi-lo me fez gostar mais de muitas das canções pois, como insisti aqui, foram mostradas despidas dos excessos.

Está longe de ser um dos melhores volumes da Bootleg Series, mas cumpre seu papel de trazer luz a uma época específica.