Artigo científico disseca interpretação de Dylan

people_rings_2011Steven Rings é Ph.D em musicologia e atualmente atua como professor associado da faculdade de música da Universidade de Chicago. Entre suas produções acadêmicas, estão textos sobre o também musicólogo Jankélévitch, além dos compositores eruditos Debussy, Brahms e Bartók.

Surpreendentemente, Rings publicou recentemente um artigo na revista eletrônica MTO – Music Theory Online – sobre Bob Dylan. Já em sua introdução, há uma certa crítica – ou questionamento – sobre a ausência de Dylan nas discussões acadêmicas de música. Bob Dylan é comumente analisado nas áreas de crítica literária, mas pouco se fala de sua contribuição para a área da música.

Intitulado “A Foreign Sound to Your Ear: Bob Dylan Performs ‘It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding)’, 1964–2009”, o artigo de Steven tem como objetivo analisar uma única música e suas metamorfoses ao longo de 45 anos.

Para um leitor dylanesco, é interessante ver as análises e interpretações da música de Bob sob uma ótica acadêmica – que necessita de embasamentos, dialogismos e defesas muito concretas. E está aí uma das maiores contribuições de Steven Rings para nós.

Análise teórica

AnaliseTeorica

O artigo apresenta detalhes na estrutura da música e sua melodia. Através de gráficos e imagens, Rings analisa os acordes usados, as linhas melódicas e as variações delas ao longo dos anos.

São detalhes bem técnicos, que só os músicos entenderão, mas apresenta uma outra maneira de ver as interpretações de Dylan.

Gráficos e Tabelas

Tabela1

Para mostrar as mudanças de “It’s Alright, Ma” ao longo dos anos, são incluídos alguns gráficos e tabelas com as quantidades de vezes que a música foi executada, seu tom harmônico, e um breve descritivo do ritmo usado.

Espectograma

Spectograma

Aqui talvez seja a parte mais incrível do artigo. Para ilustrar as variações no timbre de Bob, um som mais anasalado, mais rouco e assim por diante, Rings usou um espectograma que analisa os detalhes do som, sendo possível enxergar exatamente essas características de timbres.

Além do espectograma, também são usados trechos das músicas para facilitar a visualização.

Para quem já leu vários textos sobre as interpretações de Bob Dylan, encontrar algo tão meticuloso e teórico quanto esse artigo é no mínimo curioso. A linguagem acadêmica é bem mais fria do que encontramos nos livros, mas alguns detalhes técnicos e teóricos acabam nos dando uma nova visão e amplitude do detalhe do trabalho de Bob Dylan no palco, ano após ano.

Conclusão: o amálgama estilístico atemporal dylanesco

Steven Rings finaliza seu artigo sustentando duas ideias principais. A primeira é a suspensão da identidade da canção. Ao mudar o arranjo constantemente, Bob cria uma tensão reflexiva – tanto para a audiência quanto para os músicos. É preciso estar atento para saber contemplar, e executar, o caminho trilhado pela obra.

“Canção e performance estão suspensos em uma alta dialética móvel, reciprocamente mediando uma a outra: a canção ao mesmo tempo molda, possibilita e restringe cada momento performático.”

A segunda ideia é a compilação atemporal de estilos. Bob Dylan, principalmente nas últimas décadas, parece se distanciar do próprio passado e trazer a canção-objeto para um outro patamar, mesclando inúmeras referências que não dizem respeito a si próprio, mas aos alicerces da ampla base cultural da qual Dylan usa como referência.

“Este esforço de um lado tende para a exclusão da autoria – com a mistura de músicas originais com canções tradicionais de ‘anônimos’, apagando suas distinções e ao mesmo tempo preservando em um nível sintético mais elevado, o de ‘Bob Dylan’ em seu último disfarce: o antigo cantor e curador de um passado musical quase mítico.”

Para finalizar, lembro um trecho de uma música bem mais recente do que “It’s Alright, Ma”, datada de 2009.

I’m listening to Billy Joe Shaver,
and I’m reading james Joyce.
Some people they tell me
I got the blood of the land in my voice.
(“I Feel A Change Coming On”)

Wander Wildner lança clipe dylanesco

Wander Wildner - O Breakfast do Tio Dylan

O cantor gaúcho Wander Wildner lançou hoje o clipe da música “O Breakfast do Tio Dylan”, presente em seu disco mais recente Mocochinchi Folksom.

[youtube=https://www.youtube.com/watch?v=G5sZXuXalpA]

Na letra, há referência à Lízia e à especulações sobre o que Bob Dylan comeria no café-da-manhã (temática também abordada na recente matéria da revista Esquire). Lízia não só é citada na música como também aparece belíssima no clipe, acordando com pijama dylanesco.

Para quem não sabe, Lízia é filha do dylanófilo Eduardo Bueno, que já a levou para vários shows de Bob – entre eles o último de Porto Alegre.

Inside Llewyn Davis (ou Another Loser Like Me)

“Se nunca foi nova e nunca fica velha, então é uma canção folk” –

Llewyn Davis

“See that kid sitting back at the bar
He’s picking up a storm on a Martin guitar
That poor fool thinks he’s gonna be a star
He’s just another loser like me” –

Losers, de Dave Van Ronk

Inside Llewyn Davis

De maneira simplória, “Inside Llewyn Davis – Balada de um homem comum” conta a história de um músico e suas tentativas frustradas de sucesso. Mas por trás dessa sinopse diminuta, esconde-se outro tempo e outro lugar. O bairro de New York Greenwich Village no início de 1961 era bem diferente do que conheceríamos.

E talvez esteja aí um dos grandes trunfos do filme dos irmãos Cohen: contar uma história que se passa na calmaria antes da tempestade; no prólogo antes da história ser efetivamente (re)escrita.

[youtube=https://www.youtube.com/watch?v=8jddrp_GeIU]

O Greenwich Village se transformaria nos primeiros meses de 1961. No dia 24 de janeiro, um garoto que se autointitulava “Bob Dylan” chegava de Minneapolis ao bairro com o objetivo de seguir viagem até New Jersey, onde seu ídolo Woody Guthrie padecia em um hospital psiquiátrico. Mas toda a trama de “Inside Llewyn Davis” se passa antes da influência de Bob Dylan na cena e na região.

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Llewyn Davis x Dave Van Ronk

Llewyn Davis x Dave Van Ronk

Llewyn Davis é claramente, e vagamente, inspirado no músico Dave Van Ronk. Ao contrário de Llewyn, Van Ronk tinha uma relativa fama no bairro, sendo apelidado de “Prefeito da rua MacDougal” – uma das principais da região. Além de excelente violonista, influenciado por ícones como Rev. Gary Davis e Mississippi John Hurt, Van Ronk também era referência pelos pensamentos políticos e pela seu amplo conhecimento sobre folk, blues e jazz tradicional.

Outra “incoerência” é que Dave Van Ronk não só tinha uma casa como hospedou alguns músicos iniciantes – como o próprio Dylan, que passou boa parte de 1961 na casa de Dave e Terri.

Entre as similaridades, está o título do disco “Inside Llewyn Davis” e a busca pelo sucesso. Dave Van Ronk nunca chegou a ter a fama de seus contemporâneos e apesar dos discos que lançou e das turnês que fez, sua fama basicamente se restringiu ao bairro folk de New York.

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Já em 1972, o selo Fantasy lançou uma compilação intitulada “Van Ronk” que continha os dois primeiros discos do músico – ambos gravados em abril de 1962. No encarte, lê-se:

“Dave Van Ronk tornou-se um personagem lendário na música folk, apesar de nunca ter a aceitação total do público que ele tão convincentemente merece. Como um estímulo e mentor na atmosfera de música folk de Greenwich Village, ele fornece orientação e inspiração para uma série de poetas da música, entre eles Bob Dylan, Paul Simon, Judy Collins e Arlo Guthrie”.

As armadilhas do folk

É complexo entender a razão da carreira “mal-sucedida” de Van Ronk. Sua interpretação era única e suas habilidades técnicas eram finas e virtuosas.

Seria seu repertório, recheado de músicas tradicionais antigas – e até algumas obras de Weill e Brecht, o grando culpado? Se sim, como Pete Seeger e Joan Baez conseguiram se manter tanto tempo no topo e no holofote?

joan baez and pete seeger

Tomando como base de comparação esses três músicos se tem alguns fatos concretos: Pete Seeger, ao lado de muitos companheiros como Woody Guthrie, praticamente criou o movimento de direitos civis aplicado à música. Sua contribuição para a disseminação dessa cultura popular teve um peso imensurável. Joan Baez também participou da mesma abordagem, agregando ao “folk revival” um engajamento político para a defesa dos oprimidos.

Mas talvez não esteja aí a grande diferença. Para mim, o que Dave Van Ronk sofreu foi simplesmente um “simple twist of fate”. Tanto Joan quando Pete já tinham lançado seus discos antes da chegada de Dylan em NY. Dave Van Ronk era apenas o cara certo, mas na hora errada.

Bob Dylan trouxe um frescor na tradição. Talvez a carreira de Dylan sirva como contra-exemplo para a frase de Llewyn: “Se nunca foi nova e nunca fica velha, então é uma canção folk”. Bob Dylan trouxe frases novas para uma música antiga; um pensamento atualizado revisitando os alicerces da cultura popular. A música de Dylan era nova e apenas nós, décadas depois, saberíamos que ela nunca ficaria velha.

Hang me, oh hang me I’ll be dead and gone

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“Inside Llewyn Davis” está longe de ser um filme hollywoodiano. Tanto o desenrolar da trama quanto sua narrativa espantam aqueles que querem algo harmonioso e utópico. O filme é a luta intensa do artista que acredita numa arte única e talvez pouco compreendida.

E, acima de tudo, é uma homenagem esquisita e diferente, mas com gratidão e respeito, aos ícones e lendas que são pouco conhecido de muitos, mas muito valiosos para poucos.

Infelizmente Dave Van Ronk de encaixa nessa definição e talvez agora seja a hora de compensar a falta de reconhecimento.