O poslúdio de Robert Shelton

Em um dos parágrafos finais, Robert Shelton faz uma retrato virtuoso com várias referências sobre a influência de Dylan. Consegui descobrir algumas canções e um álbum (que estão entre colchetes), mas sei que existem lacunas. De qualquer forma, é um belo trecho.

“Não podemos dar um preço às rimas, cadências e imagens de Bob Dylan que reentram no imaginário popular, de onde as tirou e refinou. Sabemos que o Mr. Jones é o arquifilisteu alheio ao fato de que algo está acontecendo [Ballad of a Thin Man]. Apesar de estarmos na Rua da Desolação [Desolation Row], continuamos seguindo em frente [Tangled Up in Blue]. Pode ser que haja sangue nos trilhos [Blood on the Tracks] e que nada seja revelado [Ballad of Frankie Lee and Judas Priest], mas ele nos disse que deve haver alguma escapatória [All Along the Watchtower]. Pode não haver caminho para casa [Like a Rolling Stone] para ele e para muitos de nós, mas com um pé na estrada e outro na cova, tentamos sair da jaula vazia que nos prende [Visions of Johanna]. Desespero e esperança travam um embate na torre do capitão, alerta-nos um par de gêmeos beligerantes. Apesar de estar tudo acabado agora, renovamos a nós mesmos deixando os mortos para trás [It’s All Over now, Baby Blue]. Somos mais jovens do que tudo isso agora [My back pages]. Morte e renascimento [Oh, Sister]. Para cada sete que morrem, há outras sete ocupadas nascendo [It’s alright, Ma]. Esquecemo-nos de onde terminam os versos de Dylan e começam os nossos.”

E aí? Mais alguma referência?

…turvava desde o coração

Tenho lido No Direction Home e afirmo que é um dos melhores livros sobre Dylan que já li. Compartilho um parágrafo em que Robert Shelton descreve duas semanas em que Bob se apresentou no Folk City, entre os dias 25 de setembro e 8 de outubro de 1961.

Durante as duas semanas ele alternou três figurinos, um mais imundo que o outro. Um dos trajes consistia numa camisa azul desbotada, calça cáqui, um pulôver escuro sem mangas, uma incongruente gravata larga, tudo sob seu famoso chapéu. Outras vezes, ele usou um paletó de camurça e uma camisa de lã sem gravata. Seu violão Gibson tinha um papel com a ordem das músicas colado na lateral superior, e o suporte de gaita ficava pendurado no pescoço. Sua aparência era minuciosamente descuidada e muito mirrada e franzina – até que ele começasse a cantar. Sua voz atormentada e comprimida parecia estar lutando para sair da garganta como um fugitivo da cadeia. Era uma voz enferrujada, que lembrava as gravações antigas de Guthrie. Era gravada em cascalho, como a de Van Ronk, e por vezes murmurava, como a de Elliott. E, ainda assim, era uma voz diferente de todas as outras. Não se pensava nela como algo belo ou sinuoso, mas como algo que turvava desde o coração. Bob não parecia nem um pouco urbanizado, mas mais ainda como um velho cantor de folk que trabalhasse numa fazenda. A maior parte do público gostou de Dylan naquelas duas semanas e o viu como um cantor étnico consumado, mas muitos o consideraram apenas uma piadas de mau gosto.

No Direction Home, de Robert Shelton

Mesmo não admitindo, Robert Shelton mudaria o curso da história da música popular ao escrever sua critica sobre um garoto prodígio que vira no Gerde’s Folk City, um café localizado no Greenwich Village, bairro boêmio de New York e centro do “revival” do folk no final dos anos 50.

Publicado no New York Times no dia 29 de setembro de 1961 com o título “Bob Dylan: Um cantor de Folk com Estilo Distinto”, o artigo descreve Dylan como uma “cara nova na música folk” e “arrebentando de tanto talento”. Coincidentemente ou não, o lendário produtor John Hammond contrataria Bob para a Columbia no mês seguinte.

[É interessante notar que nessa época Bob Dylan ainda não era famoso por suas composições, mas por suas interpretações intensas e precisas. O primeiro álbum lançado por Dylan, em 1962, continha apenas duas canções próprias (Talkin’ New York e Song to Woody)].

Nessa época, Shelton e Bob se tornaram grandes amigos. Em um texto escrito por Shelton e publicado no The Dylan Companion, o jornalista relata que passava noites conversando com Bob, Suze Rotolo, Gil Turner e Mike Harrington. Robert também afirma que Dylan era o que tinha o maior sonho.

Com o consentimento de Dylan, Shelton passou a escrever uma biografia e foi um dos únicos a entrevistar os pais de Dylan, Suze Rotolo e sua então esposa, Sara Lowndes. A produção do livro durou 20 anos e foi lançada apenas em 1986. Contudo, a edição da época foi bastante alterada e Shelton foi pressionado para a atualizar a biografia, escrevendo sobre início dos anos 80.

Agora, pela primeira vez chega ao Brasil a versão traduzida desta importante biografia, lançada pela Larousse. Como disseram os atuais editores, Elizabeth Thomson (que também editou The Dylan Companion) e Patrick Humphries, a primeira publicação de No Direction Home marcou o 25º aniversário da celebrada crítica de Robert Shelton no New York Times. Esta nova edição coincide com o 50º aniversário do artigo e com o ano em que Dylan faz 70 anos.

Segundo Derek e Tracy Barker, na revista dylanesca ISIS nº155, a nova versão de No Direction Home aparenta ser uma “versão do diretor”, contendo capitulos que foram ignorados na primeira edição e com uma ordem mais próxima do projeto inicial de Shelton. Além dessas mudanças, Thomson e Humphries a atualizaram com uma cronologia das últimas décadas.

Mais do que uma biografia com importância histórica, No Direction Home une uma descrição precisa aliada a uma linguagem quase poética sobre Bob Dylan e sua obra.

Abaixo, um pequeno trecho do Prelúdio “Os tempos mudaram” (que fora incluído na nova versão):

Ao desdenhar do título de “poeta”, Dylan se protegeu das pessoas alheias à tradição do folk e da poesia popular, incapazes de perceber o talento artístico na forma como emprestava e remodelava a linguagem coloquial, que rejeitavam as possibilidades da literatura de jukebox. Dylan começou com a linguagem do povo do interior, que floresceu, transformando-se em linguagem urbana sofisticada. Seu uso determinado da sintaxe, do vocabulário e dos ritmos do discurso coloquial, seu uso da forma canção popular e a negação de que fosse um poeta, tudo isso retardou sua real aceitação como homem das letras. Por que Dylan é um poeta extraordinário? Posso destacar aqui a concisão memorável de suas formulações e aforismos, a habilidade de dizer diversas coisas simultaneamente, o uso audacioso de metáforas, símiles e símbolos, as imagens evocativas, o emprego sagaz de rimas e quase rimas, dos sons e cores das palavras, os contextos surpreendentes e as combinações de frases oportunas que tocam e perturbam o ouvinte, a flexibilidade da cadências musical dos versos. Para muitos, a arte de Dylan é uma expressão aural/oral que requer as nuances e a ênfase da canção. Uma vez conhecidas, suas letras ganham vida no papel, a música passa a ressoar no ouvido mental.