Lone Justice: imitando Dylan (ou o “verdadeiro canto”)

Em 1984, após voltar da turnê que se viraria o disco Real Live, Bob Dylan resolveu fazer um novo álbum de estúdio (Empire Burlesque), mas dessa vez de um jeito diferente. Depois de divergências com Mark Knopfler durante as gravações de Infidels, Bob decidiu assinar a produção e a testar diversas bandas em várias sessões de gravações em estúdios diferentes. Ron Wood participou de algumas sessões e testemunhou um Dylan menos assertivo e confiante no resultado.

Paralelo a tudo isso, Carole Childs – uma das namoradas de Dylan na época e que trabalhava como A&R (artista e repertório) da gravadora Geffen – sugeriu que Bob desse uma canção ao grupo que ela acabara de assinar e que gravavam seu disco de estreia.

Lone Justice

O Lone Justice era tido como os queridinhos do momento, com a bela cantora Maria McKee à frente e um estilo nomeado como “cowpunk”. Ainda assim, Maria e cia. ficaram surpresos ao ter como visita Bob Dylan, acompanhado por Ron Wood, para entregar-lhes pessoalmente a demo da música “Go ‘Way Little Boy”.

Ouça a demo feita por Dylan:

Bob resolveu acompanhar as gravações – talvez como um estágio para entender melhor a função de produtor que ele assumiu em seu próprio projeto. Anos depois Maria relembrou o momento e a orientação dylanesca:

“Ele veio até o estúdio quando estávamos gravando nosso primeiro álbum e nos ensinou a música. E ele ficou por aí. Ele trouxe Ron Wood com ele e eles tocaram na música… Nós acabamos trabalhando durante bastante tempo porque ele não gostava do jeito que eu estava cantando… até que eu cantei como se fosse ele! Chegou ao ponto que eu apenas fiz minha melhor imitação de Bob Dylan – e ele disse, ‘Ah, agora você está cantando de verdade!’

Circularam duas versões da música. Uma possui um solo de órgão no começo enquanto a outra (abaixo) possui um solo de gaita que alguns dizem ser do próprio Dylan – e outros de Maria.

Ouça a versão com a gaita no início:
[youtube=https://www.youtube.com/watch?v=KB5ahWU09i8]

O grupo lançou apenas mais dois discos – sendo mais um de estúdio e outro ao vivo.

When The Ship Comes In (ou a revolta dylanesca)

As recentes manifestações no país me fizeram relembrar, e de alguma maneira re-contextualizar, algumas músicas da chamada “fase de protesto” de Bob Dylan. Na semana passada, apenas postei a letra de “The Times They Are A-Changin’” e sua mensagem clara. Dessa vez, contudo, resolvi escrever algumas palavras de “When The Ship Comes In”, que também se encaixa na mesma temática, mas com uma abordagem apocalíptica e ainda mais alegórica.

Dylan on Brecht

Brecht On Brecht

“When The Ship Comes In” está diretamente ligada a um contexto engajado e poético. Isso porque em abril de 1963, Suze Rotolo – namorada de Bob – trabalhava na produção de “Brecht On Brecht”, um espetáculo off-Broadway (fora do circuito de elite do teatro nova-iorquino) baseado em canções de Berthold Brecht e Kurt Weill.

Um dia, Dylan foi se encontrar com Suze no teatro e se deparou com as músicas da dupla – “eram erráticas, sem ritmo e imprevisíveis – visões estranhas… eram como canções folk em sua natureza, mas ao contrário das canções folk também, porque eram sofisticadas”, lembraria décadas depois em suas Crônicas.

Uma das músicas ouvidas pelo visitante de 21 anos foi “Pirate Jenny”, composta para a “Ópera dos Três Vinténs”. Junto com “Mack The Knife”, “Pirate Jenny” é uma das músicas mais famosas da obra.

“Pirate Jenny” é uma música apocalítpica e vingativa. Conta basicamente a história de uma empregada que se vinga de seus patrões com a chegada de um navio da liberdade, justiça e boas intenções. Ao fim da canção, ao ser questionada sobre o fim de seus chefes autoritários, responde para matá-los.

A vingança pós-desdém

Bob & Joan

Segundo a própria Joan Baez, Bob estava a acompanhando em uma turnê pela Costa Leste americana quando ela parou o carro em frente a um hotel e pediu para Dylan verificar se era o hotel com o quarto reservado em nome de Joan Baez. Bob voltou informando que não havia reserva, mas quando ela foi ter certeza, viu que na verdade o funcionário havia mentido para Dylan. Enquanto a cantora pedia um quarto para seu acompanhante, o recepcionista tratou Bob com desdém, mas atendeu a famosa musicista.

Nesta noite, Bob Dylan – embriagado de ódio – escrevia “When The Ship Comes In”.

Sua versão de “Pirate Jenny” é tão assustadora quanto a original, mesmo que menos tétrica. A chegada do navio dylanesco é marcada pelo quase cessar do tempo, com o mar se dividindo ao meio e o vento parando de soprar. Os inimigos, acordando e desacreditando do que o esperavam, percebem não têm nada a fazer. A embarcação da justiça e sabedoria não estava de brincadeira.

Whole Wide World is watchin’

A canção foi lançada em 1964, no disco “The Times They Are A-Changin’”. Sua estreia ao público, porém, foi no ano anterior. Dylan escolheu esta música para cantar no dia 28 de agosto de 1963, na histórica Marcha dos Direitos Civis em Washington – para quem não se lembra, a manifestação teve como marco o famoso discurso “I Have A Dream”, de Martin Luther King.

Dylan, que nos anos 60 foi considerado o “porta-voz de sua geração” parece muitas vezes também ter um momento de profeta de gerações futuras. “When The Ship…” poderia muito bem ser a trilha sonora de boa parte dos protestos recentes no país.

Tudo ainda ESTÁ acontecendo e agora talvez não seja a melhor hora de entender O QUÊ ocorre, mas já está claro que já é um marco para cada um de nós, participantes ativos ou não.

Como se prevesse o futuro, em meio a um contexto com cobertura não só da grande mídia, mas também dos próprios autores e testemunhas, Dylan estava certo ao dizer com uma aliteração que faz lembrar todo o poder da Internet nos dias de hoje:

And the ship’s wise men
Will remind you once again
That the Whole Wide World is watchin’.

Veja o clipe de “Pay In Blood” (ou quase isso…)

Até o momento, a única música do disco Tempest a receber um clipe foi “Duquesne Whistle”. Apesar da letra ser uma amável e nostálgica lembrança de um antigo amor, o vídeo conta a história de um obsessivo admirador-secreto que persegue sua amada até passar por maus bocados e ser largado na calçada em que Bob Dylan passeia com sua gangue bizarra.

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=mns9VeRguys]

O nonsense do vídeo e sua imperceptível ligação direta com a música fez com que um tal de Derek repensasse o clipe através de uma outra canção do disco: “Pay In Blood”.

A letra de “Pay In Blood” é muito mais sombria e complexa. Já existem algumas interpretações das possíveis referências usadas por Dylan para a compor.

Há quem acredite que seja uma continuação do narrador de “Mississippi”; outros pensam mais como um diálogo complexamente intercalado entre um escravo e seu patrão, um soldado e um político, um advogado e até o Governo; uma outra interpretação indica que seja uma crítica a pensões alimentícias e à ex-mulheres.

Entre as possíveis referências, Shakespeare (com “I came to bury not to praise” vindo da peça Júlio Cesar) e a Bíblia são os mais fortes candidatos.

Voltando ao clipe, veja-o e diga se faz sentido:

[vimeo=https://vimeo.com/63455997]