Resenha: Trouble No More (ou A devoção dylanesca)

“Muitas pessoas falam ‘Staple Singers não cantam mais gospel’. Mas você sabe… Gospel não é nada além da verdade e nós estamos falando a verdade em nossas músicas. E é disso que tenho tanto orgulho. (…) Nós sentimos que quando cantamos a verdade, não faz nenhuma diferença qual o estilo que ela tem. Ainda é Gospel”. Pops Staples, em 1971, sobre Staple Singers começar a cantar música secular e em um ritmo soul.

Dois anos depois de lançar o 12º volume de Bootleg Series (no qual abordou as gravações de estúdio de 1965 e 1966), Jeff Rosen (empresário de Dylan) & cia lançam em 2017 “Trouble No More – The Bootleg Series Vol.13”, focado na fase cristã do artista(entre 1979 e 1981).

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Contextualizando

Depois de turbulências no casamento de Bob e Sara Dylan desde 1974, período do álbum Planet Waves e uma turnê recorde com The Band, o casal se separaria oficialmente em junho de 1977.

Os discos Planet Waves, Blood On The Tracks e Desire já ilustram essa instabilidade amorosa (ora devota, ora cítrica). Já Street-Legal, de 1978, insinua uma busca por um significado de vida para além do casamento.

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O ponto de partida da mudança ocorreu durante um show em 1978 na cidade de San Diego, quando alguém jogou uma crucifixo de metal no palco. Bob pegou e guardou-o no bolso. No dia seguinte, uma epifania mudaria o curso de sua vida.

“Eu disse ‘Bom, preciso de algo hoje a noite’. Eu não sabia o que era. Eu estava acostumado a todo tipo de coisa. Eu disse ‘Eu preciso de algo hoje a noite que eu não tive antes’. E eu olhei no meu bolso e eu tinha esse crucifixo”. “Havia uma presença no quarto que não podia ser de mais ninguém além de Jesus… Jesus colocou sua mão em mim. Foi uma coisa física. Eu senti. Eu senti em tudo. Todo o corpo tremeu. A glória do Senhor me nocauteou e me levantou”. – Bob Dylan

A partir de então, Bob Dylan se converteu ao cristianismo no começo de 1979 através da Igreja evangélica Vineyard. Começou a escrever canções religiosas, inicialmente para sua futura companheira Carol Dennis, mas depois resolveu gravá-las ele mesmo. Assim nascia o conceito de Slow Train Coming e da fase cristã que duraria até 1981.

Uma primeira turnê no fim de 1979 até início de 1980 focou apenas no material pós-conversão, com canções do disco recém lançado e do próximo, Saved. Na segunda metade de 1980, Dylan voltaria a tocar algumas canções antigas, numa turnê que ficou conhecida como “Retrospectiva Musical”.

“Unboxing” Trouble No More – Deluxe

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O box é composto por oito CDs e um DVD. São dois discos com um compilado de registros ao vivo, dois só com gravações em estúdio ou em passagens de som, dois discos com uma seleção de um show em Toronto de 1980 e outros dois com um show em Londres de 1981. Já o DVD é o filme Trouble No More, com imagens ao vivo intercalados por sermões escritos por Luc Sante e interpretados por Michael Shannon.

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Também compõe o box dois livros, um recheado de fotos e um texto do mágico Penn Jilette e outro com uma introdução (por Ben Rollins), análise do período (por Amanda Petrusich) e comentários faixa-a-faixa (por Rob Bowman).

Trilhando Trouble No More

A viagem pelas 102 faixas em pouco mais de 8 horas é plural, apesar de monotemática. Tirando algumas músicas do show de Londres em 1981, todo o material dialoga de alguma maneira com a fé e devoção ao Deus cristão.

Minha apreciação com o box tem mais de uma frente: 1- A forma, em que se admira a busca contínua de Dylan pela melhor expressão da canção naquele momento. Neste ponto, o destaque está para a diferença de “Gotta Serve Somebody” do show de Londres para as outras versões. Um ritmo que lembra uma embolada martela a mensagem simples: seja quem você for, estará sempre do lado de Deus ou diabo.

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2- O conteúdo, quando é possível ver Dylan ainda tateando e criando variações líricas para aperfeiçoar sua mensagem. Um destaque é Caribbean Wind, já no fim da fase cristã, quando Bob parece ter absorvido todo o conhecimento necessário sobre a religião para poder aplicá-lo de maneira mais profunda e intrínseca a sua obra sem que soe como um panfleto do Evangelho.

3- A devoção, em que é possível ver e entender a paixão de Dylan por Deus. A versão de estúdio de “When He Returns” é um ótimo exemplo: acompanhado apenas por piano, Dylan veste o véu do intérprete como poucos e entrega um registro sublime. Proporcionalmente, é o mesmo impacto que tenho quando ouço algumas obras de Bach e percebo o foco no sagrado criando uma atmosfera única e que torna institivo o sentimento da presença divina na obra. Trocando em miúdos: é possível sentir Deus na canção e interpretação dylanesca.

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Eu não sou uma pessoa religiosa, mas não é preciso ser crente para encontrar a beleza nesta fase de Dylan. Em 1979, logo após uma série de shows que Bob Dylan fez em São Francisco, o jornalista Paul Williams lançou o livro “Dylan – What Happened?” focando nas possíveis causas que fizeram Bob se tornar cristão. Williams também questiona o impacto da conversão na admiração pela arte de Dylan. Apesar de criticar trechos de letras que expressam certo conservadorismo cristão, a conclusão de Paul é similar à minha relação com Trouble No More:

“(…) E Bob Dylan continua sendo um herói para mim, porque suas recentes mudanças refletem o mesmo tipo de coragem de dentro da alma, integridade e comprometimento para o crescimento pessoal e artístico que eu sempre admirei dele desde o começo.”

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Assim, apesar de possíveis discordâncias sobre o os temas defendidos por Bob Dylan, é preciso se questionar qual a razão que cada um contempla a sua obra. Para uns é o posicionamento e importância política e social da obra; para outros são as figuras de linguagem e poética que rendeu a Dylan um Nobel de Literatura. Para mim, como disse Paul, é a metamorfose dylanesca em busca do novo para si e em uma viagem que é introspectiva sem ser ególatra. Este comprometimento mais consigo do que com o público é a integridade que respeito e admiro, por sempre trilhar seu próprio caminho de maneira transparente consigo e com seus objetivos como artista.

Conclusão

Trouble No More é uma bela compilação deste período, mas está muito aquém dos volumes anteriores. Enquanto Cutting Edge e The Basement Tapes fazem um garimpo arqueológico em dois períodos cruciais e Another Self Portrait redesenha a história, Trouble No More peca em alguns detalhes importantes.

Não há menção nenhuma à abertura dos shows de 1979, iniciada com um monologo de Regina Davis e depois acompanhada por Helena Springs e Terry Young para cantar seis músicas gospel. Outro ponto deixado de fora dos registros sonoros e que são importante nessa fase são os sermões que Dylan insistia em fazer nos shows, com críticas aos contrários a sua conversão e dizeres sobre apocalipse e afins.

Ainda assim, o volume 13 da Bootleg Series encanta pela honestidade de Bob Dylan. A frase inicial deste texto, de autoria de Pops Staples (pai de Mavis, que na data do lançamento de Trouble No More excursiona com Bob Dylan), se deu quando Staples Singers estavam ampliando seu repertório para além do gospel que faziam, dialogando com outros temas e estilos. Exatamente o oposto aconteceu com Dylan. Porém, no final, o que esperamos de um artista é sua entrega total, como ambos fizeram.

Ouça uma amostra do box no Spotify:

Assista Bob Dylan no Desert Trip (“Oldchella”) na íntegra!

Bob Dylan, Desert Trip (14/10/2016)

Que semana para Bob Dylan! Tocou para 75 mil pessoas no festival Desert Trip (Califórnia) na sexta, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura na quinta, se apresentou no mesmo dia em Las Vegas (sem qualquer menção ao prêmio – sendo a única surpresa empunhar a guitarra depois de anos durante “Simple Twist of Fate”) e retornou à Califórnia para fechar sua participação no festival que também trouxe Rolling Stones, Paul McCartney, Neil Young, The Who e Roger Waters.

(Quase) o mesmo repertório, mas um show bem diferente

Bob Dylan fez minúsculas mudanças no repertório dos três shows dessa semana. Se na primeira participação no Desert Trip ficou de fora os dois maiores clássicos de sua carreira, “Blowin’ In The Wind” e “Like A Rolling Stone”, o cantor resolveu incluí-los separadamente nos dois shows seguintes – além de acrescentar uma música de sua atual fase “crooner”, “Why Try To Change Me Now”.

Para o show do dia 07 de outubro de 2016, um Bob Dylan mais intimista, usando seu chapéu e sentado ao piano boa parte (apesar de muitos notarem que ele não usava camisa por baixo do terno – talvez querendo manter o estilo, mas cedendo ao calor californiano). Segundo relatos, Dylan parecia mais solto e alegre do que de costume na apresentação de Las Vegas no dia 13/10, mesmo dia do anúncio do Nobel de Literatura.

Bob Dylan, Desert Trip (14/10/2016)

Em sua segunda aparição no Desert Trip, 14/10, Bob Dylan manteve a desenvoltura do show de Las Vegas. Tocou piano, mas de pé, e deixou o chapéu intocado próximo ao guitarrista Charlie Sexton (a camisa também não estava presente). Em alguns momentos, pegou um dos quatro pedestais de microfone no centro do palco e se portou como um devido roqueiro – talvez para dizer que é primeiro músico e depois Nobel de Literatura (mas deixou em destaque uma réplica do busto “Poesie”, de Antonio Garella, atrás do piano). Porém, o mais notado foi que ele permitiu que transmitisse no telão o show inteiro (na semana anterior, só as primeiras músicas). Ainda assim, os ângulos eram distantes – ruim para quem quer ver muitos detalhes, mas bom para criar a ambiência que Dylan parece perseguir nos últimos anos.

Houve uma mudança drástica no repertório desses primeiros shows de outubro em relação aos anteriores que privilegiava as canções de seus dois últimos discos (Shadows In The Night e Fallen Angels) de standards já interpretados por Frank Sinatra. Este ajuste deve estar diretamente ligado à amplitude de público do festival. Ao mesmo tempo, é impossível deixar de perceber a consistência da carreira de Dylan. Deste repertorio mais “nostálgico”, sete músicas são dos anos 60, duas dos anos 70 e oito são de 1997 para cá, incluindo “Make You Feel My Love”, como se Bob quisesse retomar os créditos depois que a canção ficou famosa na voz de Adele.

É fato que Bob Dylan distoa de boa parte de seus contemporâneos sessentistas que também subiram ao palco do Desert Trip (talvez a única exceção seja Neil Young). Ele preferiu seguir um outro caminho, menos nostálgico e mais desafiador. Também optou por menos fogos de artifício para focar em sua arte primária: a música.

Vídeo: Bob Dylan no Desert Trips (Oldchella) – 14/10/2016

Repertório:
1. Rainy Day Women #12 & 35 (Bob ao piano)
2. Don’t Think Twice, It’s All Right (Bob ao piano)
3. Highway 61 Revisited (Bob ao piano)
4. It’s All Over Now, Baby Blue (Bob ao piano)
5. High Water (For Charley Patton) (Bob no centro do palco)
6. Simple Twist Of Fate (Bob no centro do palco com gaita)
7. Early Roman Kings (Bob ao piano)
8. Love Sick (Bob centro do palco)
9. Tangled Up In Blue (Bob no centro do palco com gaita)
10. Lonesome Day Blues (Bob ao piano)
11. Make You Feel My Love (Bob ao piano)
12. Pay In Blood (Bob no centro do palco)
13. Desolation Row (Bob ao piano)
14. Soon After Midnight (Bob ao piano)
15. Ballad Of A Thin Man (Bob no centro do palco com gaita)
(bis)
16. Like A Rolling Stone (Bob ao piano)
17. Why Try To Change Me Now (Bob no centro do palco)

Outros vídeos:

Ouça show histórico de Bob Dylan em local nazista (Nuremberg, 1978)

“This is an old one. Not really new. It gives me great pleasure to sing it in this place!”
Bob Dylan em Nuremberg (01/07/1978), antes de cantar “Masters of War”.

“And I hope that you die
And your death’ll come soon
I will follow your casket
In the pale afternoon
And I’ll watch while you’re lowered
Down to your deathbed
And I’ll stand over your grave
‘Til I’m sure that you’re dead”
Trecho de “Masters of War”.

O Terceiro Reich alemão começou em 1933 e perdurou até 1945, computando 12 anos de Estado totalitário nazista. Entre os locais favoritos de Hitler para ver os desfiles e fazer seu discurso, estava em Nuremberg, em um imponente complexo de construções.

Bob Dylan tocaria na Alemanha em 1978 para findar um hiato de 12 anos sem uma turnê mundial. A cidade do último show no país foi Nuremberg, e o local escolhido foi justamente uma das construções do complexo citado.

Temos, portanto, uma sorridente ironia: 12 anos de presença nazista e 12 anos de ausência dylanesca. Contudo, o que torna tudo isso mágico é a origem judáica de Bob. Um judeu congregando 80 mil pessoas para falar de coisas que durante 12 anos sequer poderiam ser pensadas.

Zeppelinfeld, Nuremberg (Alemanha)

Hitler, em Nuremberg.

A passagem de Bob Dylan pela Alemanha na turnê de 1978 se concluiu em um show em Nuremberg, no dia 1º de julho. O local escolhido foi parte do Reichsparteitagsgelände, um conjunto de construções criado na década de 30 para o Partido Nazista com foco em desfiles e discursos.

A tribuna Zeppelinfeld foi inspirada no Altar de Pérgamo, uma magnífica construção que os gregos fizeram para Zeus, “pai dos deuses e dos homens”. Zeppelindelf está localizada à leste da gigantesca avenida principal do complexo e possui 360 metros de comprimentos. Seu nome é uma homenagem ao criador do Zeppelin, que em 1909 pousou com um de seus dirigíveis na região.

Bob Dylan, em Nuremberg.

Em um monumento tão imponente e significativo quanto o Zeppelinfeld, Bob Dylan cantou por duas horas e meia, compensando o hiato de 12 anos.

Open Air Festival

01/07/1978

Apesar de tocar no festival britânico “Isle of Wight Festival” em 1969 e excursionar em 1974-76 com The Band e depois com a Rolling Thunder Revue, Bob Dylan estava desde o acidente de moto de 1966 sem fazer uma turnê mundial. Isso mudaria em 1978.

Influenciado pela numerosa “E Street Band”, do Bruce Springsteen, e talvez satisfeito com o palco cheio da turnê de 75-76, Dylan montou um grupo com 11 integrantes para rodar por Oceania, Asia, Europa e América do Norte e tocar em 114 shows em 78.

Os organizadores do show em Nuremberg resolveram montar um grande festival a céu aberto para satisfazer os mais de 80 mil pagantes. Ao lado de Bob Dylan, artistas como Sonny Terry & Brownie Mc Ghee, Leroy Little, Lake, Vince Weber e Eric Clapton (que voltou ao palco para tocar o bis com Dylan).

Bob Dylan, 1978.

Bob Dylan tocou 30 músicas em um set de cerca de duas horas e meia. A apresentação foi empolgante e Bob parecia inspirado. Entre as músicas, passou até a fazer comentários. Na hora de apresentar o trio de cantoras, disse:

“Cantoras de apoio no dia de hoje! À esquerda, minha noiva Carolyn Dennis. À direita, minha paixão de infância, Jo Ann Harris. E, no meio, minha atual namorada, Helena Springs.”

Há quem diga, como Eric Clapton, que Bob Dylan não sabia da história da região que tocava. Contudo, ouvindo a gravação, é possível ouvir Bob falando, antes de começar sua fatal “Masters of War”: “Me dá muito prazer tocar esta música neste lugar”.

Na época, havia apenas 15 dias que seu último álbum, Street Legal, fora lançado. Quase como uma previsão, eis um trecho de uma música do disco (“Changing of the Guards”), mas que Dylan só tocaria no dia 5 de Julho de ’78, em Paris.

“Gentlemen, he said
I don’t need your organization, I’ve shined your shoes
I’ve moved your mountains and marked your cards
But Eden is burning, either brace yourself for elimination
Or else your hearts must have the courage for the changing of the guards

Peace will come
With tranquillity and splendor on the wheels of fire
But will bring us no reward when her false idols fall
And cruel death surrenders with its pale ghost retreating
Between the King and the Queen of Swords”

Ouça o show completo: