Resenha: Bootleg Series V.14 – More Blood, More Tracks

“É difícil fazer um disco como esse. Você tem que manter três, quatro coisas indo ao mesmo tempo… assim como a vida” – Bob Dylan, durante as gravação de “Buckets Of Rain”.

Desde o volume 10, a Bootleg Series deixou de lado um compilado de sobras para se transformar em um garimpo arqueológico que detalha, e às vezes reescreve, a história dylanesca. Nesta décima quarta edição, intitulada “More Blood, More Tracks”, o foco está na gravação de um dos discos mais importantes da carreira de Bob Dylan, Blood On The Tracks, lançado no início de 1975 e gravado em dois momentos – setembro, em New York, e dezembro, em Minneapolis. O Bootleg Series 14, ou BS14, traz boas versões, apresenta uma imersão rara de Dylan no estúdio e coloca uma nova narrativa nas intenções do músico para o álbum.

A edição de luxo do BS14 vêm com 87 faixas organizadas cronológicamente em seis discos. É contemplada as quatro sessões de gravação ocorridas em setembro de 1974, em New York. Para as gravações de Minneapolis, infelizmente só sobraram os registros que seriam oficialmente lançados, apresentados no box com uma mixagem mais transparente.

Como bem nota Jeff Slate, responsável pelo texto de apresentação e o faixa-a-faixa, o primeiro dos seis discos já apresenta uma nova história. Se antes acreditávamos que Dylan começou gravando com a banda Deliverance e depois optou por um registro com menos instrumentos, agora vemos que ele entrou no mesmo estúdio que gravara The Freewhellin’ Bob Dylan com a intenção de fazer um disco solo e acústico. Só na segunda sessão de gravação a banda Deliverance foi chamada para uma sessão – e logo em seguida abandonada quase por completo, com testes com alguns dos músicos (principalmente o baixista Tony Brown).

Com um disco que retoma os holofotes à habilidade meticulosa de Dylan na poesia e narrativas envolventes, também teve como intenção inicial retomar o formato que o lançou neste seguimento: o folk solitário do andarilho que viveu e agora compartilha os aprendizados.

(Para saber mais sobre Blood On The Tracks e seu contexto, sugiro este artigo que escrevi há algum tempo)

O box também ilustra bem passagens já sabidas, como as condições de gravação das sessões de New York. Muitos dos músicos, principalmente o baterista Richard Crooks, relataram que a forma como foram colocados na sala e a opção de Dylan de evitar usar fones de ouvido dificultaram as performances, pois era difícil se ouvirem. Em algumas faixas, como “You’re Gonna Make Me Lonesome When You Go”, fica claro como o baterista estava perdido – e também como Dylan parecia querer caminhar sozinho, pelo menos no início, para tirar a poesia do papel e colocá-la na fita.

O caderno vermelho

Em edições anteriores, os Bootleg Series já traziam dois livretos, sendo um com texto sobre o disco e faixa a faixa e outro com fotos e memorabilia. Para o BS14, o segundo livreto incluiu um dos itens mais intrigantes da arqueologia dylanesca.

Para compor as canções de Blood On The Tracks, Bob Dylan comprou pequenos cadernos em espiral e os levou até sua fazenda em Minneapolis. Os itens são mencionados em várias biografias, mas pouco veio a público. A partir da Bob Dylan Archive, eles conseguiram digitalizar os cadernos existentes e no BS14 traz imagens fac-símiles de um dos cadernos. (O site de Dylan até disponibilizou quatro páginas que foram esquecidas na impressão).

Passear pelo famoso caderno vermelho é percorrer os caminhos sangrentos que Dylan optou enquanto desenhava o disco. Algumas canções são reescritas inúmeras vezes, como Idiot Wind, e outras recebem inclusões caóticas de ajustes, como “If You See Her, Say Hello”.

Destaques da trilha

Apesar de algumas versões que não chegaram à Blood On The Tracks terem aparecido em bootlegs extraoficiais ao longo dos anos, este compilado apresenta as faixas sem um eco exagerado que o produtor Phil Ramone optou, além de colocá-las em ordem cronológica de gravação. Desta forma, temos uma viagem translúcida e mais próxima do real, como se tivéssemos uma cadeira cativa no estúdio.

“If You See Her, Say Hello”, que Cristiano Radke notou ser a canção que inicia e termina o box, é um grande destaque. Na faixa de abertura, soa doída, sincera, mas consciente: Bob Dylan dialoga consigo mesmo, em um devaneio que nos lembra suas gravações no mesmo estúdio, uma década antes. É um artista menos ansioso, menos sedento, mas ainda muito preocupado com toda a concepção da canção.

“Up to Me” foi uma canção descartada por um motivo óbvio – sua similaridade gritante com “Shelter from the Storm” – mas imagino que haja outra razão: sua transparência nas analogias e simbolismos. É impossível não pensar nas diversas “sinucas de bico” da canção como questões que rondavam Dylan na época. Em BS14, temos nove versões, cada uma apontando para um lado, mas todas intrigantes.

“Shelter From the Storm” (Take 1) é divertida. Soa quase igual como a versão que foi para o disco, mas é menos desesperada. O grande destaque é o piano de Paul Griffin que intercala com as estrofes criando uma leveza divertida.

“Idiot Wind” é um capítulo a parte (tanto que já escrevi sobre ela aqui). É uma canção completa, extrema, intensa, comovente e cáusticamente real. No BS14, é de se perder ouvindo as nove versões e prestar atenção na interpretação metamórfica de Dylan, que ora é tristonha, ora é revoltada.

Conclusão

É uma grande perda a ausência de mais detalhes das gravações de Minneapolis – tanto pela beleza das versões e habilidade dos músicos, mas principalmente pela sua importância na guinada que o disco deu no resultado final. Ainda assim, More Blood, More Tracks está entre os melhores volumes da Bootleg Series. Uma compilação bela e incrível das habilidade de Bob Dylan com as palavras e com a sinceridade nas interpretações.

Mergulhar nas gravações é ter ainda mais carinho e respeito por Blood On The Tracks – um disco tão importante para a carreira do artista quanto para a pessoa.

Infográfico de BS14

Abaixo, um breve infográfico sobre as faixas do box.

6 thoughts on “Resenha: Bootleg Series V.14 – More Blood, More Tracks

  1. Idiot Wind é a canção que me dilacera e emociona sempre quando decido escutar o disco sozinho, quando realmente escuto. Muitas vezes cantei em lágrimas…rs. E hoje a noite não será diferente. Depois de lê sua resenha a agulha tá pronta..rs. Valeu.
    P.s: Voce devia fazer uma compilação das análises dos discos e fazer um ebook e vender na Amazon, versão para kindle.

    1. Idiot Wind é uma obra pesada. Sempre tenho essas viagens catárticas como a que vc descreveu.
      E sobre o ebook, não é uma má ideia mesmo! Tenho mais de 300 posts aqui… uma parte dele deve valer a pena ter numa versão dessa. Preciso só bolar como faria isso! haha

      Abração!

  2. Maravilha! Pra mim Mr. Dylan é campeão em se auto-boicotar. É impressionante a quantidade de versões e canções que ele decidiu mudar , ou nem incluir nos discos. E na medida que fui descobrindo essas músicas, pro meu gosto, a grande maioria dos outtakes me agradam mais que as ditas originais. E muitas que ele preferiu não incluir , são verdadeiros crimes contra os LPs lançados. Abraço dylanesco!

    1. hahaha
      Exatamente! Ele tem um talento para desperdiçar muita coisa boa. O melhor exemplo talvez seja “Blind Willie McTell”, mas este bootleg também mostra um outro lado magnífico que foi desdenhado. Abração!

      1. Sobre “Blind Willie McTell” eu costumo dizer o seguinte: é como se John Lennon resolvesse lançar o álbum “Imagine” e deixar justamente a canção “Imagine” de fora, ou se os Beatles resolvessem lançar o “Let it Be” sem a canção título…
        Ainda bem que, mais no começo de carreira isso não existia e não tivemos de esperar anos para ouvir “A Hard Rain’s a-Gonna Fall”, “Don’t Think Twice, it’s All Right”, “The Times They Are a Changin’ “, “Gates of Eden”, “Like a Rolling Stone”… Isso só para citar algumas, já que o espaço é pequeno e NÃO POSSO CITAR TODAS AS MÚSICAS do mestre…
        Impressionante o auto-boicote…
        Graças a Deus, a Bootleg Series veio para compensar tudo isso!
        Agora, é também impressionante como as obras eternas são perenes até em suas versões alternativas… Que o digam as versões de “Tangled up in Blue” constantes nesse lançamento.
        Abraço Dylanmaníaco à todos

  3. Bela resenha, como sempre. Você destacou muito bem o aspecto das diferentes versões das canções e como ele coloca um sentimento diverso em cada uma delas. Parece que a opção final foi lançar as versões que denotam um tom de desabafo, de expulsar de si os sentimentos daquele momento, em detrimento das versões mais brandas. As versões finais soaram pra mim como “Like a Rolling Stone” ou “Positively 4th Street”, numa catarse do começo ao fim do disco.

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