Bob Dylan, 75, e a ocupação em nascer

Allen: Você canta suas próprias canções ou de outras pessoas?
Dylan: Elas são todas minhas, agora.
(Bob Dylan no Steven Allen Show – 1964)

Bradley: Você fica decepcionado [por não compôr mais coisas como “It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding)]”
Dylan: Bom, você não pode fazer uma coisa para sempre. Eu fiz isso uma vez e eu posso fazer outras coisas agora. Mas eu não posso fazer isso.
(Bob Dylan no 60 Minutes – 2004)

Foto: Gijsbert Hinnen?
Foto: Gijsbert Hinnen?

55 anos de carreira; 65 discos oficiais; cerca de 500 músicas compostas; mais de 3400 shows; 75 anos de vida. Apesar de já serem surpreendentes, esses números não fazem jus à influência que Bob Dylan tem na história da música. Quando o assunto é dylanesco, é preciso saber ler nas entrelinhas.

55 anos de carreira é um termo pouco exato. São inúmeras carreiras em mais de meio século. Ele talvez não goste que digamos isso, mas talvez seja a única forma de nos aproximar da sua realidade – e que Todd Haynes usou de maneira brilhante em “I’m Not There” para ilustrar toda a complexidade dylanesca. Para Dylan, estar em constante mudança é condição básica para o artista continuar a se expressar. Se reinventar é não ficar parado e o desafio do novo rejuvenesce sua arte, mesmo que olhando para trás.

65 discos é um número invejável, mas se torna ainda mais pomposo quande se vê as infinidades de caminhos, abordagens, sensações e sentimentos. E engana-se aquele que pensa que Bob Dylan é um marco sessentista. Como veríamos, os 10 discos lançados na década de 60 possuem uma relevância ímpar, mas estão longe de serem os únicos essenciais para entender e apreciar toda sua obra. Como pensar em Dylan sem lembrar do expurgo de Blood On The Tracks? Ou das belas histórias, acompanhadas do violino, de Desire? Ou da “trilogia cristã”, com altos e baixo, mas com um comprometimento único? Ou na superação de uma década quase perdida com Oh Mercy? Ou a volta ao status de lenda ativa com Time Out of Mind? Ou, surpreendendo até os mais fiéis seguidores, os dois discos (por ora) com canções clássicas de Sinatra?

Cerca de 500 músicas? Algumas podem passar desapercebidas, ou até com alguns focos de vergonha alheia, mas não pense em quantidade pela qualidade. Boa parte das canções significam, e ressignificam, mais do que você imagina. Quando imerso no universo lírico dylanesco, não é incomum dialogar sua vida com as músicas, como se elas fossem a profecia de todo ser humano. “It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding)”, “Most Of The Time”, “Love Sick”, “Like A Rolling Stone”, “Workingman’s Blues #2”, “Idiot Wind”… cada canção possui vida própria, com personalidades, anseios e aflições. E cabe a nós entender, e apreciar, cada um desses meandros.

Mais de 3.400 shows… Aí está um número invejável por si só. É uma quantidade absurda, ainda mais quando se pensa nos hiatos na carreira de Dylan. Para se ter uma noção, na primeira década do segundo milênio, com Bob na casa dos sessenta anos de idade, foram 1.039 apresentações. Uma média de 104 shows por ano; cerca 1 show a cada 3 dias sem parar! (E Bob insiste em dizer que a “Never Ending Tour” acabou-se nos anos 80…). Quando entramos nos pormenores das apresentações, um novo mundo se abre: cada sílaba cria vida própria, mesmo que pouco inteligível. Durante muito tempo, as letras mudavam tanto quanto seus arranjos e sumiam e reapareciam a cada apresentação.

Nos últimos anos, porém, Bob Dylan continua surpreendendo ao manter o mesmo repertório, apelidado pelos fãs apenas de “The Set”, divido em dois atos e com raras e pequenas mudanças. É como se ele insistisse em nos contar uma mesma história; ou como se quisesse experimentar a sensação de coreografar seu canto – para quem estava acostumado a improvisar incessantemente, a repetição é um desafio. E ter desafios faz parte da mudança constante de Bob.

Bob Dylan, 75 anos

Tendo em vista dessa magnitude da obra dylanesca, seu tamanho ainda não faz por merecer duas das maiores características. E aí entram as citações introdutórias.

As duas citações acima, separadas em 40 anos, explicitam dois aspectos fundamentais para entender tanto o universo em que Dylan mergulhou quanto o paradigma artístico seguido por ele.

A apropriação artística de Dylan é um tema controverso – há quem chame de plágio e há quem fale que faz parte do chamado “folk process” -, mas é inegável o atributo de dialogismo que Bob se permite. Uma intertextualidade necessária para criar um emaranhado de discursos que enriquecem o seu próprio. É como ler uma entrevista com Borges ou uma explicação de Tom Zé: um discurso nascido do zero não é o suficiente para suprir todas as complexidades e magnitudes da vida humana. E como uma sopa intelectual, é preciso ter em mãos ingredientes que juntos dão o sabor e nutrição certos para vivermos.

“They are all mine now”. Esta é a resposta que Bob Dylan dá ao ser questionado sobre o conteúdo de seu repertório. E é essa apropriação que faz sentido quando pensamos no artista. É na antropofagia que absorve todo o poder. É a completa imersão e submissão ao que já foi criado para conseguir criar o que nunca foi dito.

“You can’t do something forever”. É assim que Dylan explica sua sensação e não compor mais canções como “It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding)”. E sua resposta é perfeita, ainda mais sobre a canção que contem “aquele que não está ocupado nascendo, está ocupado morrendo”. É a certeza de que Bob Dylan, ironicamente, faz a mesma coisa há 55 anos: reinventa-se.

Bob Dylan, 75 anos

E sua última reinvenção é brincar de não existir. Pois foi praticamente Bob Dylan que implementou nos EUA a ideia de cantautor (singer-songwriter), que criticaria justamente as canções pasteurizadas, feitas em escritórios e depois interpretadas por pessoas como… Frank Sinatra.

E agora, se aproxima deste formato outrora rejeitado com uma ousadia invejável, lutando para manter a voz limpa e afinada, mas focando os esforços para entregar uma arte transparente e intensa, rejuvenescendo os standards desgastados pelo tempo e mau uso.

Aos 75 anos, Bob Dylan renasce como quem sabe que o objetivo maior não é o destino, mas o caminho até lá.

Parabéns, Bob. Continue nascendo.

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