O melhor disco de Dylan (pt. 1): para a história do rock

Nesta minissérie, falarei a respeito do “melhor disco de Dylan” sob três óticas: para a história do rock, para a história de Dylan e para a minha história. O rótulo de “melhor disco” é relativo e pode mudar ao longo dos anos. Os últimos álbuns de inéditas, por exemplo, mostraram-se tão bons como todos os que citarei nesta minissérie. Porém, quis montar um breve panorama dylanesco a partir desses três exemplos.

A primeira parte é sobre o disco com mais relevância para o rock.

Once upon a time…

A história de Highway 61 Revisited começa em maio de 1965. Menos de dois meses depois de lançar Bringing It All Back Home – que já ilustrava a tendência de Dylan em retomar suas raízes roqueiras, com o lado A tendo Bob acompanhado de uma banda -, o cantor fez uma série de shows na Inglaterra. A turnê foi filmada por D. A. Pennebaker e se tornaria o documentário Dont Look Back. Seria a última turnê solo e acústica de Dylan.

Em Don’t Look Back, há uma cena de Dylan tocando Hank Williams com amigos no quarto do Hotel Savoy, em Londres. Uma das músicas é “Lost Highway” e um amigo lembra a seguinte estrofe – que Bob prontamente tenta resgatar da memória:

“I’m a rolling stone, all alone and lost,
For a life of sin, I have paid the cost.”

Na volta aos EUA, Dylan pensara em abandonar a música. Ele comentou com um amigo que achava suas apresentações monótonas e, ao se questionar se ele mesmo iria num concerto de Bob Dylan, ele teve que se responder com sinceridade: “não”.

A salvação veio logo depois da turnê britânica (e possivelmente durante o vôo de volta). Bob escreveu “um vômito, que parecia ter 20 páginas” e que não se parecia com nada, apenas algo rítmico no papel. Ele não pensara neste texto como uma música até o momento em que, sentado ao piano, viu escrito, como que em câmera lenta, a frase “How does it feel?”.

Nothing to lose

Bob recrutou no dia 15 de junho de 1965 seu produtor desde parte de Frewheellin’ Tom Wilson, para gravar uma música no estúdio A da Columbia. Para a sessão, Dylan sugeriu Mike Bloomfield, guitarrista da Butterfield Band. Além do restante dos músicos, Tom Wilson convidou o amigo e guitarrista Al Kooper para acompanhar a sessão.

Kooper chegou antes e prontamente trouxe sua guitarra. Já estava preparado quando viu chegar Dylan acompanhado de Bloomfield – com sua guitarra molhada de chuva nas mãos. Ao ver o guitarrista apenas se aquecendo, Al percebeu que não teria chances na guitarra e preferiu guardar suas coisas e se dirigir à sala de controle.

(Em um texto detalhista e investigativo, Derek Barker escreveu na sua Isis #120 sobre esses dois dias de sessão. Segundo suas pesquisas, Al Kooper chegou a tocar guitarra no dia 15. O que importa, contudo, é que Kooper estava convicto de que participaria da gravação e conseguiu se instalar no órgão de maneira malandra, mesmo sem nunca ter tido contato com o instrumento. No texto de Barker, Kooper relata que teve sorte ao ver que o órgão estava ligado, já que ele não saberia nem mesmo ligar a parafernália toda).

Com Bloomfield na guitarra, Kooper no órgão, Bobby Gregg na bateria, Joseph Macho Jr. no baixo, Paul Griffin no piano e Bruce Langhorne no pandeiro, Bob Dylan tocou guitarra e cantou uma das mais importantes músicas da história do rock.

As primeiras versões eram com Dylan no piano e uma levada de valsa, mas logo Bob encontraria o som que precisava para conseguir elevar o som da sua poesia.

Just take everything down to Highway 61

A escolha do nome deste disco é tão importante quanto o próprio disco. Se no álbum anterior Bob levou tudo de volta para casa, agora ele cairia novamente na estrada e passaria pela espinha dorsal da sua música.

A Rota 61 liga o norte ao sul dos EUA. No extremo norte, passa por Duluth, onde Bob nasceu, e Hibbing, cidade em que Dylan foi criado. A estrada é conhecida como “The Blues Highway” e também é caminho para os locais de nascimento e casas de Elvis Presley, Muddy Waters, Charley Patton e Son House.

Segundo a lenda, o famoso pacto com o demônio de Robert Johnson ocorreu na encruzilhada da Rota 61 com a 49. Precisa de mais?

Playing the electric violin

Cena de Don’t Look Back em que Bob aprecia a variedade de design das guitarras britânicas

Após gravar “Like a Rolling Stone”, Dylan só retornaria ao estúdio no fim de julho. Dessa vez não teria mais a supervisão de Tom Wilson e receberia Bob Johnston como seu novo produtor. As razões dessa mudança são misteriosas, mas uma das possibilidades seria, além de um desgaste na relação entre Dylan e Tom, uma necessidade de mudança na forma como as gravações seguiam. Bob agora tinha um novo processo de composição e interpretação.

Entre “Like a Rolling Stone” e a gravação do restante das faixas, Dylan se apresentou na edição de 1965 do Newport Folk Festival. Após uma participação tímida em 1963, ele voltou no ano seguinte como a grande atração e “porta-voz da geração”. Em 1965, Dylan experimentaria algo completamente diferente.

Um dos grandes objetivos do festival é difundir a cultura popular americana e suas várias facetas. Ao lado de apresentações de danças típicas, negros interpretam seu blues do Delta ou a versão elétrica de Chicago. Há workshops para auxiliar nessa disseminação do folk.

Tudo leva a crer que Bob Dylan não pensava em apresentar as músicas elétricas de Bringing It All Back Home e nem seu recém-lançado single, “Like a Rolling Stone”. Porém, ao perceber que Mike Bloomfield e outros músicos também estavam em Newport, resolveu ensaiar improvisadamente e apresentar esta nova roupagem. Em troca, ganhou as primeiras vaias que receberia nos próximos meses e alimentou ainda mais o mito dylanesco.

I had to rearrange their faces and give them all another name

Highway 61 Revisited consolida algo que era esporádico nas letras de Bob Dylan: a utilização de personalidades, reais ou não, para compor um contexto fantástico e surreal. Cassius Clay (“I Shall Be Free No. 10”) e Abraham Lincoln (“Talkin’ Word War III Blues”) já foram coadjuvantes nas fábulas dylanescas, mas agora Bob usa e abusa deste recurso.

Entre as canções com menções, “Highway 61 Revisited” e “Tombstone Blues” possuem uma boa quantidade delas. Mas nenhuma supera “Desolation Row”: Romeu se apaixona pela Cinderela; Corcunda de Notre-Dame, Caim e Abel são os únicos que não aguardam a chuva nem fazem amor; Einstein está disfarçado de Robin Hood. Esses são apenas alguns exemplos contidos na faixa que encerra o álbum.

Trilhando ‘Highway 61 Revisited’

Like a Rolling Stone: Como bem definiu Dylan, não se trata de ódio, e sim de vingança. Cuspida em mais de 6 minutos, “Like a Rolling Stone” conseguiu ser single e promoveu Dylan ao patamar de sucesso no pop, mesmo com críticas dos conservadores do folk. A batida inicial dá o sinal de que há um marco. Bruce Springsteen lembra que, quando a ouviu pela primeira vez, a batida soou como se uma porta fosse arrombada com um pontapé.

Tombstone Blues: O galope de “Tombstone Blues” remete a um resquício do estilo cru de Bringing It All Back Home, como a simplicidade de “Maggie’s Farm” e “Subterranean Homesick Blues”. A letra, influenciada por uma conversa entre policiais sobre a morte, tece comparações precisas, como “The geometry of innocent flesh on the bone/ Causes Galileo’s math book to get thrown”. No final, Dylan dá a dica, mesmo que obscura: “Now I wish I could write you a melody so plain/ That could hold you dear lady from going insane/ That could ease you and cool you and cease the pain/ Of your useless and pointless knowledge”.

It Takes a Lot to Laugh, It Takes a Train to Cry: Inicialmente com o nome de “Phantom Engineer”, esta canção com um títullo bem-humorado é um shuffle dos anos 40 com uma bateria arrastada. A letra possui algumas referências de blues e country, como o termo “my gal” e a frase sobre a lua brilhando por entre as àrvores, vinda diretamente de “Poor Me”, de Charley Patton.

From a Buick 6: Para Hinton, um carro clássico americano ganhou uma canção à altura. A música vem de “Milk Cow Blues”, de Sleepy John Estes e regravada por Elvis na fase Sun Records. Irwin concorda com Hinton ao ver uma temática de amor. Bob faz a descrição de sua mulher, possivelmente Sara Dylan: “she don’t make me nervous, she don’t talk too much”.

Ballad of a Thin Man: Para mim, é um recado direto para os jornalistas incapazes de entender as drásticas mudanças e evoluções do rock. Bob descreve um “freak show” para mostrar como Mr. Jones não consegue saber o que tudo aquilo significa, mesmo sendo letrado. Mas a crítica também pode ser apontada para qualquer não entendendor da obra dylanesca. A estrutura da música é uma arte única, com uma batida densa e uma melodia dura.

Queen Jane Approximately: Seria Queen Jane aproximadamente a então rainha do folk, Joan Baez? Shelton vê como um ataque pungente à “vida familiar tradicional, conscienciosa, marcada por regras de etiqueta ritualísticas, aflitivas, sem sentido”.

Highway 61 Revisited: A Rolling Stone definiu assim: Bob Dylan “guia uma série de personagens malfadados (sendo Deus e Abraão os mais conhecidos) pela ‘estrada do blues’ dos Estados Unidos, enquanto desfila seu veneno contra uma série de hipocrisias americanas como o falso patriotismo e o comercialismo grosseiro”.

Just Like Tom Thumb’s Blues: Diversas referências ilustram essa viagem ambígua e desastrada. O título pode ser do personagem de “Ma Bohème”, de Rimbaud, mas talvez esconda um jogo com Tom Wilson, ex-produtor de Dylan. O trajeto começa em Juarez (que fica próxima à Rota 61), passa até pela Rua Morgue de Edgar Allan Poe e segue até o momento em que o narrador percebe que é hora de voltar para New York. Para Polizzotti, ela pinta um quadro de blefes e perdas, de estar esgotado e do medo de você nunca mais poder voltar pra casa.

Desolation Row: Única música da última sessão de estúdio, ocorrida no dia 4 de agosto. Após algumas tentativas com outros músicos, Bob achou melhor se manter acústico e recrutou apenas os músicos Charlie McCoy no violão e Russ Suvakus no baixo. A canção pode ter influência de Desolation Angels, de Kerouac, mas suas referências são inéditas na música. Dylan disse a Jann Wenner que a compôs no banco de trás de um táxi em New York. Shelton faz uma das melhores sínteses:

“O cenário é uma paisagem de sonho e a descrição de Dylan combina de forma poderosa o grotesco, o existencial e o sonho. “Desolation Row” é um Mardi Gras grotesco em que heróis e vilões do nosso mito-história perfilam-se lado a lado. (…) O escritor que questionou a sociedade por dois anos agora encontra as respostas, mas não gosta do que vê. Tudo é absurdo, está virado de cabeça para baixo; tudo está perdido; tudo é ridículo; a única verdade repousa ao longo da Desolation Row.”

Concluindo: por que é o melhor disco de Dylan para história do rock?

“Se você precisasse resumir Highway 61 Revisited em uma única frase, bastaria dizer que é o álbum que inventou a atitude e a elevou a uma forma de arte. Basta olhar a capa. Ninguém, de Johnny Rotten a Eminem, fez algo melhor do que aquilo até hoje” – Nigel Williamson.

Highway 61 Revisited e seu maior sucesso influenciaram a criação de uma revista especializada. O rock não era mais apenas uma música pop que circulava nas paradas de sucesso. Agora, o rock é poesia, é expressão artística e é reflexão da condição do homem moderno. Aceitem ou não, muito disso se deve a Bob Dylan.

7 thoughts on “O melhor disco de Dylan (pt. 1): para a história do rock

  1. eric clapton relatou em sua autobiografia que chegou a participar de uma sessão de gravações de bob dylan em idos de 65/66, agora não me recordo ao me certo… teria o deus da guitarra contribuído em highway 61 revisited ou blonde on blonde, nem que seja em alguma faixa descartada por bob?

    1. André,

      Uma das primeiras tentativas de Dylan em montar uma banda elétrica foi com a banda de John Mayall, The Bluesbreakers. Clapton esteve na banda entre 65 e 66.

      O fato é que Dylan não gostou muito do resultado. O som que buscava não era o blues tradicional. Anos depois, ele disse:
      “The closest I ever got to the sound I hear in my mind was on individual bands in the Blonde on Blonde album. It’s that thin, that wild mercury sound. It’s metallic and bright gold, with whatever that conjures up.”

      Infelizmente, eu nunca ouvi qualquer som vindo desse encontro de Dylan com o Bluebreakers.

      Abraços!

  2. Carolyn Hester disse que Bob Dylan é o rei do rock, sem o roll.
    Concordo com ela, e por causa disso acho que “Blonde on Blonde” supera “Highway 61” infinitamente.
    Já li, não sei onde, que Bob Dylan também acha o mesmo, “aquele som metálico, que enleva. Pena que eu não consiga fazê-lo o tempo todo.”, disse ele sobre “Blonde on Blonde”.
    “Blonde on Blonde” é arte em detalhes riquíssimos, o que “Highway 61” não é nem de perto, aqueles roquinhos bem ruinzinhos, voz gritada, enfim, a maioria das músicas não é realmente boa.
    Estrutura de música.
    Estrutura harmônica de rock’n’roll e blues é de uma pobreza tamanha, e Bob Dylan sabia, sabe disso.
    Já pensei que, se Bob Dylan não fosse fã de Charles Aznavour, o que ele seria?
    Seria mais um, apenas isso, mais um.

  3. A primeira tentativa de Bob Dylan de ter uma banda de apoio não foi com John Mayal e os Bluesbreakers, não, isso não procede.
    A primeira vez foi com a The Band mesmo, quando a The Band não era The Band, e acompanhava o John Hammond Jr., que achava eles o melhor grupo de acompanhamento de blues pesado.
    O John Hammond, o Jeep, apesar de ser amigo de Bob Dylan, não gostou nada, nada de Bob Dylan ter “estragado” o Levon and The Hawks. O John Hammond disse isso, que o grupo tinha ficado mais um depois que passou a acompanhar Bob Dylan, ainda egresso de acompanhar Ronnie Hawkins. Portanto, não procede que o Bob Dylan tentou formar um grupo com membros ou algo assim dos Bluesbreakers.

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