Bob Dylan subiu ao palco da segunda noite (de três) em Oakland às 20h08 e eu só sei disso porque estava sentada atrás da mesa de som. Meu celular (e o de todos os presentes) foi selado em uma bolsa de nylon na entrada do evento. Talvez justamente por isso o bardo estivesse de tão bom humor: não havia um celular à vista para tirar o seu sossego.
O mesmo não aconteceu em New York em novembro do ano passado, quando assisti a primeira parte da turnê “Rough and Rowdy Ways” no Beacon Theatre. Ali, vi VÁRIAS pessoas sendo retiradas do show por abusarem das fotos e vídeos em vez de simplesmente aproveitarem o show.
Em Oakland, mesmo sem a distração dos smartphones, teria sido fácil perder a entrada de Dylan no palco. Ele aparece sem alarde junto com a banda, senta ao piano e imediatamente começa a tocar. É um show eficiente, focado e por isso, excelente.
Senti que ele estava animado essa noite. E talvez fossem as luzes douradas do belíssimo Fox Theatre, mas fiquei com a impressão de que esse foi, talvez, o show mais erótico dele que já assisti. Vou tentar explicar: sua voz estava confiante o tempo todo e ele cantou com uma malícia e sarcasmo que me lembraram demais a versão dele de 66 que desafiava jornalistas a torto e a direito.
Acho que a plateia também estava um pouco excitada, porque foram todos à loucura quando ele cantou “The size of your cock will get you nowhere” durante Black Rider.
Outra coisa que melhorou de New York pra cá parece ser a saúde do músico. Na costa leste ele precisou se apoiar no piano para cantar em pé ao microfone, mas aqui na California ele parecia estar muito mais confortável e seguro de si. Quando finalmente saiu de trás do esconderijo que é o imenso piano para cantar Melancholy Mood, ele ganhou uma ovação em pé de vários minutos, o que pareceu tê-lo deixado um pouco tímido, mas que de maneira alguma interferiu na qualidade da performance, uma das melhores da noite.
Outro destaque foi Gotta Serve Somebody. Com um ritmo contagiante, a música colocou os americanos, sempre tão rígidos nos seus assentos pré-determinados, para dançarem. E nesse momento pensei que, para honrar a capa do mais recente álbum, esses shows tinham que ter acontecido em algum lugar com uma pista de dança pra mais gente poder se soltar. As músicas eram perfeitas para isso e a banda estava impecável a noite toda.
Em termos de interações com a estrela da noite, ganhamos vários “Thank You” e um “You’ve been a great crowd tonight”, o que me fez sorrir de orelha a orelha por baixo da máscara.
É fácil ver porque ele continua na estrada aos 81 anos. Ele se diverte e deixa a música o conduzir durante as quase duas horas do show que entrega.
Comecei a acompanhar Bob Dylan ao vivo um pouco tarde na vida, quando fui capaz de pagar pelos meus próprios ingressos. Tive a sorte de vê-lo no Brasil em 2012, em Palo Alto em 2019, em NY em 2021 e agora em Oakland em 2022 e o que posso dizer sobre essas experiências é: com uma carreira de mais de 60 anos, Bob Dylan CONTINUA evoluindo e melhorando.
Saí do show de hoje com a impressão de que foi melhor do que tudo que já vi dele até então. É por isso que enquanto ele estiver na estrada, faço questão de acompanhá-lo. Dylan ao vivo nunca desaponta.
Eis que Bob Dylan está prestes a chegar aos 80 anos. Como já é clichê dizer, são muitos Dylans dentro dessas oito décadas. Herói do folk, controverso no rock e country, flertando com o soul, gospel e tantos outros estilos. Se reinventando incansavelmente, sem medo de arriscar.
80 anos. É muito tempo, muita história e muita vida. Que a gente comemore ainda bons anos de aniversário por toda a arte que ele continua a entregar e se entregar.
Nos últimos 10 anos, fiz textos e devaneios diversos atrelados ao universo dylanesco. Para os 80 anos, resolvi listar uma pequena parcela das razões que me fazem admirar a arte de Bob Dylan.
Todas possuem links. Para os incansáveis leitores, sugiro guardar nos Favoritos para curtir aos pouco.
Vida longa, Bob!
80 razões (e links) para celebrar a vida e obra de Bob Dylan:
Updade (2024): comecei um podcast para abordar diversos temas. São episódios curtos com informações e análises e um dos primeiros é sobre essa canção. Conheça o Podcast Dylanesco, disponível no Spotify, Amazon Music, Apple Podcast e Youtube. Ah, aproveita e segue no Instagram também: @dylanesco.
A pergunta mais óbvia que se faz depois de ouvir “The Ballad Of a Thin Man” é: quem é o tal Mr. Jones? Porém, muito mais do que saber seu primeiro nome ou seu semblante, a canção explora um dos maiores arquétipos de Dylan. “Um observador que não vê, uma pessoa que não faz as perguntas certas”, segundo um dos dylanescos-mor, Robert Shelton. Por isso, que tal uma imersão nessa canção que pouco saiu do repertório de Dylan desde 1965?
Something is Happening: Contexto
Desde quando Bob Dylan estava inserido apenas na cena Folk, com canções como “Blowin’ In The Wind”, “A Hard Rain’s A-Gonna Fall” e “It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding)”, já havia uma condecoração nobre: um poeta profético. Após os discos elétricos, seu público aumentou consideravelmente e junto com ele houve uma inflação na sua reverência, sendo promovido a termos como “Porta Voz da Geração”.
Além da especulação quase divina em relação à Dylan, outro ponto importante era o próprio jornalismo da época. As primeiras revistas dedicadas ao rock estavam apenas começando e muitas publicações mais tradicionais ainda não sabia lidar com o aumento de relevância do estilo e sua aproximação a uma poética mais ousada, engajada e complexa. O despreparo e falta de imersão geraram algumas perguntas absurdas e necessidade de um rótulo de algo que ainda estava em transformação. Seus registros são no mínimo curiosos:
Os exemplos acima mostram parte do cotidiano de Bob quando estava em turnê ou divulgação de novidades (com lançamentos a cada 3 meses entre 62 e 66, contando álbuns e singles). Uma hora é preciso revidar, certo?
Nobody Has Any Respect: Conteúdo
Com um nome possivelmente baseado na franquia de comédia dos anos 30 e 40 “Thin Man”, que em 1947 lançou o filme “The Song of the Thin Man”(o que, ao meu ver, não é preciso ter de muita reflexão sobre o título, sendo apenas uma curiosidade. Como é possível ouvir na versão Deluxe do Bootleg Series Vol.12, Dylan costumava batizar as canções com palavras praticamente aleatórias. Neste caso, Dylan diz no começo do take 1 “Esta se chama “Ballad of a Thin Man, Parte 1”), a canção é descrita por Oliver Trager como uma versão dylanesca para O Processo, de Kafka, em que Mr. Jones está preso no absurdo e é julgado em um meio que ele desconhece.
Para Mark Polizzotti, “Thin Man” segue a mesma linha acusatória de “Like A Rolling Stone” e “Positively 4th Street”, mas dessa vez Dylan é o grande inquisitor, distante e implacável.
Mr. Jones é um homem comum, de família rica, que se acha entendido por ler best sellers de literatura e por andar com gente culta e metida a inteligente. Contudo, quando se depara com uma realidade diferente da qual está acostumado, se perde por completo, sem entender absolutamente nada.
Ao nomeá-lo, Dylan incitou uma série de especulações sobre o real senhor Jones. Há quem o classifique como Brian Jones, dos Stones; há quem ache que foi uma menção ao escritor negro e militante Le Roi Jones; ou mesmo que há um contexto homossexual. Bob Dylan desvendou o mistério 12 anos depois, em um show de 1978, quando afirmou que escreveu a canção para “um repórter que trabalhava no Village Voice em 1963” (talvez Jeffrey Jones, que se sentiu até orgulhoso pelo bullying dylanesco). Em 1986, Dylan deu ainda mais pistas sobre sua motivação:
“Esta é uma canção que eu escrevi em resposta às pessoas que fazem perguntas todo o tempo… Eu imagino que a vida de uma pessoa fala por si mesmo, certo? Então de vez em quando você tem que fazer este tipo de coisa – colocar alguém no seu devido lugar… Esta é minha responsta para algo que aconteceu na Inglaterra, eu acho que foi 1963 ou 1964…” – Bob Dylan
Assim como o freakshow que Mr. Jones se depara, sua identidade é uma construção complexa, como uma colcha de retalhos. Sua fonte primária pode ter sido o tal repórter, mas acho que o próprio Dylan percebeu como o perfil se adequaria a inúmeros outros jornalistas e curiosos de algo que estava acontecendo e não sabiam do que se tratava. As analogias e metáforas de Dylan criam uma ambiência rica para exemplificar como “entendedores entenderão”. A escolha do sobrenome pode ter nascido de uma pessoa real, mas também é uma opção comum (como Silva aqui no Brasil). Um exemplo está na clássica entrevista de Bob a Horace Judson, da revista Time, em que o músico quer exemplificar um homem comum e diz “C.W. Jones”.
“Ballad of a Thin Man” deve ser entendida não só como um produto dentro de um contexto – quando Dylan deu cérebro ao rock e bagunçou toda uma forma pseudo-jornalística de se abordar o pop -, mas também expandir a reflexão para as relações humanas. Oliver Trager sugere “O Processo”, mas há mais Kafka em “Thin Man”. Tal qual em “A Metamorfose”, Bob Dylan questiona as relações humanas, as intenções reais dos interlocutores. Não há respeito, não há boas intenções. É o absurdo do Homem sendo o lobo do Homem.
Here’s Your Throat Back: Forma
Depois de alguns dias de descanso, Bob Dylan e sua banda de apoio (Mike Bloomfiled – guitarra; Paul Griffin – Rhodes; Al Kooper – órgão; Bobby Gregg – bateria; Harvey Brooks – baixo) voltaram para o estúdio A da Columbia no dia 2 de agosto, segunda-feira, para uma sessão produtiva e penúltima ida ao estúdio do que se tornaria Highway 61 Revisited (a próxima sessão seria exclusiva para “Desolation Row). “Ballad of a Thin Man” é última a ser gravada no dia (por volta das duas da manhã), a primeira música do álbum a começar com um piano – que muitos não sabiam que era o instrumento inicial de Dylan -, e apenas dois takes para chegar a versão final. É um começo soturno, que ganha ainda mais calafrios com a bateria arrastada e as ambiências sonoras do órgão. O clima é quebrado com um breve riso de Bob, que parece ilustrar o absurdo da canção.
Com exceção da Ponte, cada estrofe obedece o mesmo formato, com Dylan enfatizando a rima e a penúltima linha rimando com “Mr. Jones (a-a-a-b-b). Como disse Polizzotti, Bob já usou este tipo de estrutura de rimas em outras canções (“My Back Pages”, “Maggie’s Farm”, por exemplo). O formato mostra um esforço técnico, já que é preciso encontrar várias palavras para a mesma rima. O resultado é uma sensação de algo inevitável, como se tudo acabasse obrigatoriamente no mesmo lugar.
Give Me Some Milk: Repercussão
“Thin Man” rendeu uma repercussão considerável. No primeiro show após o lançamento do disco, em Forest Hills (28 de agosto de 1965), Bob manteve a introdução da música até que as vaias contrárias ao trecho elétrico da apresentação diminuíssem para que ele pudesse entregar com exatidão sua mensagem. Outro ponto alto na mesma época é no famoso show de Manchester (17 de maio de 1966). É esta a canção que antecede um dos xingamentos mais famosos da história do rock: “Judas!”.
No belíssimo filme “I’m Not There”, ganhou boa atenção com uma espécia de clipe, com um jornalista Jones sendo arrastado por situações bizarras e uma Cate Blanchet como Bob Dylan.
Ao longo dos anos, as versões tiveram mudanças relativamente pequenas, Apesar disso, foi objeto de estudo para um artigo acadêmico em que se analisa a voz e entonação de Bob Dylan em cinco décadas da canção.
Em 2012, Bob Dylan passou a usar um piano no palco e ecos na canção. Tempos depois, usou o instrumento para entoar “Thin Man” – contudo e sem surpresas, a famosa linha no instrumento não foi tocada por Dylan.
https://www.youtube.com/watch?v=o7YIRDtIkt0
Até julho de 2015, a canção pouco saiu do repertório. Até as poucas mutações empregadas por Dylan mostram o quão respeitoso ele parece ser pela obra criada. E até hoje, alguma coisa acontece no mundo dylanesco e inúmeros senhores Jones insistem em fazer as perguntas erradas.